VIDE: kardia
Lemos na revista Vers l’Unité (de julho-agosto e setembro-outubro de 1926) um estudo, assinado pela senhora Th. Darei, em que se encontram algumas considerações muito próximas, sob certos aspectos, das que já tivemos oportunidade de expor. Talvez algumas ressalvas pudessem ser feitas a respeito de certas expressões que, a nosso ver, carecem de toda precisão desejável; entretanto, nem por isso deixa de ser interessante reproduzir diversas passagens desse estudo.
“… Se existe um movimento essencial, é o que fez do homem um ser vertical, com estabilidade voluntária, um ser cujos impulsos de ideal, cujas preces e sentimentos mais elevados e puros sobem como incenso para o céu. Desse ser, o Ser supremo fez um templo no Templo e para isso dotou-o de um coração, isto é, de um ponto de apoio imutável, um centro de movimento que torna o homem adequado às suas origens, semelhante a sua Causa primeira. Ao mesmo tempo, é verdade, o homem foi provido de um cérebro; mas esse cérebro, cuja enervação é própria do reino animal como um todo, encontra-se, de facto, submetido a uma ordem de movimento secundário (em relação ao movimento inicial). O cérebro, instrumento do pensamento encravado no mundo, é o transformador e o meio de tornar realizável esse pensamento latente, para uso do homem e do mundo. Mas só o coração, por um aspir e umexpir secreto, permite ao homem, permanecendo unido ao seu Deus, ser pensamento vivo. Do mesmo modo, graças a essa pulsação real, o homem conserva sua palavra de divindade e opera sob a égide de seu Criador, atento à sua Lei, feliz com a sorte, que pertence unicamente a ele, de raptar a si próprio, afastando-se do caminho secreto que leva de seu coração ao Coração universal, ao Coração divino… Recaído no nível da animalidade, por mais superior que por direito possa ser chamado, o homem não mais se utiliza de seu cérebro e seus anexos. Assim fazendo, vive unicamente de suas possibilidades transformadoras; vive do pensamento latente espalhado pelo mundo; mas não pode mais ser pensamento vivo. Contudo, as religiões, os santos, os monumentos, mesmo que erigidos sob o signo de uma ordenação espiritual desaparecida, falam ao homem de sua origem e dos privilégios correspondentes. Por pouco que queira, sua atenção, voltada exclusivamente para as necessidades inerentes ao seu estado relativo, pode exercitar-se para restabelecer nele o equilíbrio, para recuperar a felicidade… O excesso de seus extravios leva o homem a reconhecer que são inúteis. Quase sem alento, eis que por um movimento instintivo dobra sobre si mesmo, refugia-se em seu próprio coração e, timidamente, tenta descer em sua cripta silenciosa. Ali, os vãos ruídos do mundo se calam. Se permanecem, é que a muda profundidade não foi ainda alcançada, que o augusto umbral não foi ainda transposto… O mundo e o homem são uno. E o Coração do homem, o Coração do mundo são um só Coração.”
Nossos leitores encontrarão aí sem dificuldade a ideia do coração como o centro do ser, ideia esta que, tal como explicamos (e a ela voltaremos ainda), é comum a todas as tradições antigas, provenientes da tradição primordial cujos vestígios se encontram ainda por toda parte àqueles que sabem ver. Também pode ser encontrada a ideia da queda que lançou o homem longe do seu centro original e que lhe interrompeu a comunicação direta com o “Coração do Mundo”, tal como estava estabelecida de forma normal e permanente no estado edênico.1 E pode ser encontrada, por fim, no que diz respeito ao papel central do coração, a indicação do duplo movimento, centrípeto e centrífugo, comparável às duas fases da respiração.2 É verdade que, na passagem que citaremos agora, a dualidade desses movimentos está relacionada à do coração e à do cérebro, o que parece à primeira vista introduzir alguma confusão, ainda que isso também possa ser sustentado quando nos colocamos em um ponto de vista um pouco diferente, em que o coração e o cérebro são considerados de algum modo como Polos do ser humano.
“No homem, a força centrífuga tem por órgão o Cérebro, e a força centrípeta, o Coração. O Coração, sede e conservador do movimento inicial, é representado no organismo corporal pelo movimento de diástole e sístole que continuamente reconduz ao seu propulsor o sangue gerador da vida física, impelindo-o para irrigar o campo de sua ação. Mas o coração é também algo mais. Como o Sol que, mesmo ao espargir os eflúvios da vida, guarda o segredo de sua realeza mística, o Coração reveste-se de funções sutis não discerníveis para quem não se inclina na direção da vida profunda e não concentrou sua atenção sobre o reino interior do qual ele é o Tabernáculo… O Coração, a nosso ver, é a sede e o conservador da vida cósmica. As religiões sabiam disso ao fazer do Coração o símbolo sagrado, o mesmo acontecendo com os construtores de catedrais que erigiram o lugar santo no coração do Templo. Também o sabiam aqueles que, nas tradições mais antigas, nos ritos mais secretos, abstraíam-se da inteligência discursiva, impunham silêncio ao seu cérebro para entrar no Santuário e erguer-se para além do ser relativo até o Ser do ser. O paralelismo entre o Templo e o Coração nos reconduz ao duplo modo de movimento que, de um lado (modo vertical), eleva o homem acima de si mesmo e o livra do processo próprio da manifestação, e, de outro (modo horizontal ou circular), o faz participar de toda essa manifestação.”
A comparação entre o Coração e o Templo, tal como foi referida no trecho que acabamos de transcrever, encontra-se em particular na Cabala hebraica.3 E, como indicamos antes, também podem lhe ser associadas as expressões de certos teólogos da Idade Média que assimilavam o Coração de Cristo ao Tabernáculo ou à Arca da Aliança.4 Por outro lado, no que diz respeito à consideração do movimento vertical e horizontal, ela se refere a um aspecto do simbolismo da cruz, desenvolvido em especial em certas escolas do esoterismo muçulmano, e do qual falaremos talvez algum dia.5 Esse simbolismo, de fato, é tratado na sequência do mesmo estudo, do qual extrairemos uma última citação, cujo início poderá ser relacionado ao que dissemos, a propósito dos símbolos do centro, sobre a cruz no círculo e a swastika.6
- O Sagrado Coração e a Lenda do Santo Graal.[↩]
- A Ideia de Centro nas Tradições Antigas.[↩]
- Le Coeur du Monde dans la Kabbale hébraique. (V. também O Rei do Mundo, cap. III, e Le Symbolisme de la Croix, caps. IV e VII.[↩]
- V. Alguns Aspectos do Simbolismo de Jano.[↩]
- Cf. Le Symbolisme de la Croix, cap. III.[↩]
- V. A Ideia de Centro nas Tradições Antigas.[↩]