Os dois capítulos anteriores1 deixaram claro que há uma diferença de níveis entre os Nomes Divinos e que um Nome superior praticamente contém em si todos os Nomes de níveis inferiores. Se esse for o caso, então é natural supormos que deve haver nessa hierarquia o Nome mais elevado, ou seja, o mais abrangente, que contém todos os outros Nomes. E, de fato, de acordo com Ibn Arabi, esse Nome existe: ‘Misericordioso’ (Rahman). O presente capítulo será dedicado a uma análise detalhada do pensamento de Ibn Arabi com relação a esse Nome supremo, sua natureza e sua atividade.
Desde o início, o conceito de Misericórdia Divina foi um tema dominante no pensamento islâmico. O Alcorão enfatiza constantemente e em toda parte a infinita Misericórdia de Deus demonstrada para com as criaturas. A Misericórdia de Deus é de fato “ampla”; ela abrange tudo. Ibn Arabi também enfatiza muito a amplitude sem limites da Misericórdia Divina. “Saiba que a Misericórdia de Deus se estende a tudo, tanto na realidade quanto na possibilidade”.
Entretanto, há um ponto importante em que seu entendimento de “misericórdia” (rahmah) difere totalmente do entendimento comum do termo. No entendimento comum, rahmah denota uma atitude essencialmente emotiva, a atitude de compaixão, tolerância bondosa, piedade, benevolência, etc. Mas, para Ibn Arabi, rahmah é mais um fato ontológico. Para ele, rahmah é principalmente o ato de fazer as coisas existirem, de dar existência a elas. É a concessão da existência, com, é claro, um tom de atitude subjetiva e emotiva por parte de quem o faz.
Deus é, por essência, “transbordante de generosidade” (fayyatf bi-al-jud), ou seja, Deus está concedendo existência ilimitada e infinitamente a tudo. Como diz al-Qashani, “a existência (wujud) é o primeiro transbordamento da Misericórdia que se diz estender a tudo”.
Esse entendimento de rahmah dá uma coloração muito particular à interpretação da natureza ética de Deus, que desempenha um papel importante no Alcorão e no Islã em geral. Isso é mais bem ilustrado pela interpretação de Ibn Arabi do conceito de “ira” divina [ghadab].