Schuon (PSFH) – Pensamento e Civilização

Uma coisa é o conhecimento metafísico e outra coisa é sua atualização no mental. Toda a ciência que o cérebro pode conter não é nada a respeito da Verdade, embora esta ciência seja de uma riqueza incomensurável do ponto de vista humano. O conhecimento metafísico é como um gérmen divino no coração; os pensamentos nada mais são que pequenos clarões. A marca da Luz divina nas trevas humanas, as passagem do Infinito ao finito, com contato entre o Absoluto e o contingente, eis todo o mistério da intelecção, da revelação, do avatara.

  • Conhecimento metafísico mental e verdade
  • O que é uma prova?
  • Menos verdade e erro
  • Espíritos racionalizantes, sistema filosófico, raciocinação, virtuosidade mental
  • Papel do raciocínio no conhecimento
  • As filosofias do conhecimento
  • Racionalismo e existencialismo (naturalismo e surrealismo)
  • A fenomenologia alemã
  • Impossibilidade de superar o “subjetivo humano”?
  • O existencialismo
  • O “método histórico”
  • O “psicologismo moral”
  • Objetividade e subjetividade
  • As instituições tradicionais, civilização ?
  • A coletividade, o maquinismo, a higiene científica
  • Superioridade do ocidental moderno ?
  • Humanitarismo filosófico e verdadeira caridade
  • Crítica estéril ?

I Pensamento e civilização — excertos

Uma prova não é convincente porque é absoluta, — pois isto, ela não poderia ser, — mas porque atualiza no espírito uma evidência.

Uma prova só é possível em função de um conhecimento prévio. É preciso todo o artifício de um pensamento alienado de seu Princípio transcendente para querer marcar uma prova sobre um vazio; é como se se quisesse investigar no tempo a origem da eternidade.

É injusto rejeitar uma « prova de Deus » pela simples razão que se ignora as premissas implícitas, e evidentes para o autor da prova.

Provar o absoluto é, ora a coisa a mais fácil, ora a coisa a mais difícil, segundo as condições intelectuais do meio.


Há, correlativamente a toda prova, um elemento que escapa ao determinismo da simples lógica, e que é ou uma intuição, ou uma graça; ora, este elemento é tudo. Na ordem intelectual, a prova lógica nada mais é que uma cristalização totalmente provisória da intuição, cujas modalidade são incalculáveis em função da complexidade do real.


Pode-se certamente provar toda verdade ; mas toda prova não entra em todos os espíritos. Nada é mais arbitrário que rejeitar as provas clássicas de Deus, pois cada uma é válida em relação a uma certa necessidade de causalidade. Esta necessidade de causalidade cresce, não em proporção ao conhecimento, mas em proporção à ignorância. Para o sábio, cada estrela, cada flor, prova metafisicamente o Infinito.


O « progresso teológico » : é precisar aquilo que os predecessores não tinham achado necessário dizer, ou limitar as coisas a tal grau de entendimento. A escolástica — naquilo que ela tem de limitativo — não poderia nascer sem um compreensão defeituosa dos Padres gregos.

Há algo de análogo, na heresia, que aprofunda com estardalhaço a fim de poder dissimular suas taras fundamentais ; mas aqui não se trata mais de “verdade menor” nem de limitação dialética, mas de simples erro.


Os espíritos racionalizantes têm a assombração dos “pensamentos”; vêm os conceitos, não as “coisas”, donde suas críticas falhas em doutrinas inspiradas e tradicionais. Não veem nem as realidades das quais falam estas doutrinas, nem as coisas não expressas que se afirmam por si mesmas. Criticam como juristas aquilo que surpreende seus hábitos mentais não podendo alcançar as “coisas”, consomem as palavras; é próprio dos filósofos objetivas suas limitações.


Uma doutrina metafísica é a encarnação mental de uma verdade metafísica.

Um sistema filosófico é o ensaio racional de resolução de certas questões que a gente se põe a si mesmo. Um conceito só é um “problema” em função de tal ignorância.


Para alcançar a verdade, é preciso despertar em si — se é possível — a faculdade intelectiva, e não se esforçar em “explicar” pela razão realidades que não se “vê”; ora, a maior parte das filosofias partem de uma espécie de cegueira axiomática, donde suas hipóteses, seus cálculos, suas conclusões, tantas coisas mais ou menos desconhecidas em metafísica pura, a dialética desta sendo antes de tudo fundamentada sobre a analogia e o simbolismo.


A filosofia não se limita a « expor » tendo conta à necessidade de causalidade do intelectivo ao qual a sabedoria se dirige normalmente, mas ela que “explicar” de uma maneira quase absoluta, quer dizer visando uma necessidade de causalidade desproporcionada, artificial e “profana”, em tomando suas explicações extrínsecas por fatores essenciais da verdade; ela objetiva aquilo que é apenas subjetivo, e conduz a verdade em sua própria ruína.

Há um pouco disso — com diferenças eminentes de grau e de qualidade -, em todo pensamento humano, em razão da desproporção entre o conteúdo e o continente, e da relatividade deste último.


Viver de pensamentos é substituir indefinidamente conceitos por outros conceitos. No raciocínio, os conceitos se usam sem jamais poderem ser substituídos, sobre este plano, por qualquer coisa de melhor. Nada é mais nocivo que esta usura mental de uma verdade ; dir-se-ia que as ideias verdadeiras se vingam daquele que se limita, a pensá-las.

Aquele cujo ser é exclusivamente ancorado no pensamento, que quer tudo realizar no mental e que nada mais faz que esgotar as virtualidades de conhecimento, escorrega no erro se já não se encontra lá, como curva ascendente de um círculo se transmuta imperceptivelmente em curva descendente. Apesar de certas flutuações que podem iludir, eis todo o drama da filosofia.

O pensamento humano está aberto a todas as tendências e a todas as inspirações; o homem pode pensar tanto o desgosto como o nada.


A virtuosidade mental que joga indefinidamente com os conceitos sem poder nem querer chegar a um resultado definitivo não tem absolutamente nada a ver com o gênio especulativo, cujas fórmulas aparecerão inicialmente como “ingênuas” à dita virtuosidade; além do mais esta se opõe à intuição intelectual como Lúcifer se opôs a Deus.

“O espírito sopra onde quer” (spiritus ubi vult spirat); isto não quer dizer que deve soprar por tudo.


O homem moderno coleciona chaves sem saber abrir uma porta ; cético, debate-se entre conceitos sem supor nem o valor intrínseco nem a eficácia: « classifica » ideias, na superfície do pensamento, e não “realiza” nenhuma delas em profundidade. Paga o luxo do desespero, o que é muito bem a forma a mais paradoxal da comodidade; crê ter feito experiências, enquanto nada mais faz que evitar aquelas que se impõem e não tem nem mesmo a possibilidade intelectual de as fazer; sua experiência é aquela de uma criança que tendo se queimado quer abolir o fogo.


O pensamento contemplativo é uma “visão”; não é uma “ação” como o pensamento passional. Sua lógica externa depende de sua visão interna, enquanto, no pensamento passional, o processo lógico é como que cego: não « descreve » realidades diretamente percebidas, mas “constrói” justificações mentais em função de ideias, preconcebidas que podem ser verdadeiras, mas que são “aceitadas” ao invés de “compreendidas”.
A palavra « pensador » implica que se atribua ao conhecimento uma atividade individual, o que é significativo. Quanto ao « contemplativo », ele pode não “pensar”: o ato de contemplação é principial, o que significa que sua atividade é em sua essência, não em suas operações.


O raciocínio não saberia desempenhar, no conhecimento, um papel outro que aquele da causa ocasional da intelecção; esta intervém de uma maneira súbita — e não contínua ou progressiva — do momento que a operação mental, condicionada por sua vez por uma intuição intelectual possua a qualidade que dela faz um símbolo puro. Quando o calor produzido pela fricção de dois pedaços de madeira — ou por um lente captando um raio solar — atinge o grau preciso que é seu ponto culminante, a chama surge subitamente; assim também a intelecção, quando a operação mental é suscetível de fornecer um suporte adequado, se marca instantaneamente, sobre este suporte. É assim que a inteligência humana assimila sua própria Essência universal graças a uma espécie de reciprocidade entre o pensamento e a Realidade. O racionalismo buscará ao contrário sobre seu próprio plano o ponto culminante do processo cognitivo; busca “resolver” a verdade metafísica, como se houvesse um problema a resolver, ou ainda, busca a verdade na ordem das formulações mentais e rejeita a priori a possibilidade de um conhecimento acessível além destas formulações e escapando, por consequência, — em certa medida pelo menos -, aos recursos da linguagem humana; tanto quer buscar uma palavra que seja inteiramente aquilo que designa! É desta contradição de princípio que decorre a incapacidade, logo de fornecer as formas mentais próprias a veicular a intuição intelectual e portanto a verdade, — pois as questões mal postas não demandam a luz, assim como não derivam dela -, e em seguida perceber as dimensões intelectuais alcançadas virtualmente por tal e tal formulação, mesmo defeituosa; o racionalismo procede como o homem que tentaria desenhar o ponto geométrico se aplicando em torná-lo o menor possível, ou que desejaria alcançar, sobre um plano criado qualquer, uma perfeição absoluta, negando a imperfeição necessária deste plano por um lado e a transcendência da Perfeição pura por outro.

Ora, uma formulação doutrinal é perfeita, não porque ela esgota sobre o plano da lógica mental a Verdade infinita, o que é impossível, mas porque realiza uma forma mental suscetível de comunicar, àquele que é intelectualmente apto a recebê-la, um raio desta verdade; é isto que explica porque as doutrinas tradicionais serão sempre aparentemente “ingênuas”, pelo menos do ponto de vista dos homens que não compreendem que a razão suficiente da sabedoria não se situa sobre o plano de sua afirmação formal, e que não há medida comum e nenhuma continuidade entre o pensamento — cujas evoluções nada mais têm que um valor simbólico — e a Verdade pura que se identifica àquilo que “é” e que por este fato engloba aquele que pensa.

Frithjof Schuon