Abellio – estrutura da percepção (dinâmica)

Como dito anteriormente, alguns dos movimentos indicados na figura acima se identificam com as etapas do processo de gênese do “eu”; assim sendo, primeiro temos a relação mundo ativo e objeto ainda passivo (representado na figura pelo eixo mundo-objeto, ainda sem a corrente — a seta — do mundo para o objeto), ou seja, as “águas indiferenciadas” como ponto de partida, de onde os objetos se ativam por uma inversão de polaridade com o mundo. Assim os objetos se destacam de um mundo, que ainda predomina como “águas indiferenciadas”, é a etapa da “Concepção” do “eu”; um “eu” apenas capaz de percepção em potência (“eu” ainda indiferenciado, comungando das “águas indiferenciadas”).

A etapa em que o objeto feito ativo em relação ao mundo, é acolhido pela vista ainda passiva, é o “Nascimento” do “eu”, e da percepção. O “eu” ainda é pouco diferenciado, mas o corpo e os sentidos, em contato com o mundo, fazem-no “vir ao mundo”. Nesta etapa, pela Figura 1, se dá uma “rotação” pela qual o objeto é tomado pela vista, ou outro sentido qualquer, que pode ou não se interessar pelo objeto, ou seja, pode deixá-lo na indeterminação do mundo, ou recolhê-lo e efetivamente tomá-lo, ao se tornar um sentido ativo em relação ao corpo, feito então passivo.

Enfim, a partir da incorporação do objeto, enquanto ferramenta ou instrumento, para novas reapropriações do mundo, ou seja, da universalização do objeto-utilitário, temos o “Batismo” do “eu”. O corpo atinge assim a plena realização da percepção, em conjunção com outras atividades cognitivas e afetivas. A etapa seguinte, “Comunhão”, representa a reiteração do corpo com o mundo, mas de um corpo ora estendido pelo instrumento ou ferramenta, assim comungando com um novo modo de mundo.

Abellio faz algumas constatações interessantes, em função da idéia de “proporção” que agora se impõe à simples e ingênua relação sujeito-objeto, através desta análise da percepção. Primeiro, toda relação ou razão de dois termos se exprime pela presença implícita, nesta mesma relação, de um terceiro termo, que não se revela. Este terceiro termo, imanente à relação entre os outros dois, é a consciência.

Dada as fortes conotações deste termo, preferimos denominá-lo a “visão”. Com efeito, a consciência expressa pela ontogenia do “eu” se dá através da visão. O termo “visão” não somente se aplica àquela intuição obtida pela vista, mas se refere também a qualquer percepção sensorial além da visual, como olfato, tato, sabor e audição. Este termo se aplica, muitas vezes, a uma intuição intelectual, sem a ajuda dos sentidos, como nas matemáticas. Ou seja, qualquer preensão de um objeto por meio dos sentidos abertos sobre o mundo, como toda espécie de preensão intelectual que realize um conhecimento, se enquadra sob a ideia que ora expomos. O alemão Wissen e as palavras da mesma família, die Weisheit, o saber, a ciência, der Weise, o sábio, derivam de visum, supino do latim videre. Assim como eidos, forma, no sentido de maneira de ser, deriva de FID, raiz vizinha do indo-europeu VID que significa ver: de onde decorrem as palavras sanscritas veda, vidya (conhecimento). A raiz VID significa ao mesmo tempo ver e saber. ( Allard L’Olivier, 1977, p. 37 )

Voltando à razão ou relação, pela discriminação dos termos postos em relação, a consciência justamente os constitui, e assim também se institui. Ao expressar toda relação, seja a mais ampla como a do tipo Corpo/Mundo, pela combinação de dois signos, Corpo e Mundo, separados por um traço horizontal, o simbolismo algébrico ou aritmético (/) reconhece este fato: a relação não é apenas de dois termos, mas de três, e o traço de separação-ligação (/) nada mais é do que um símbolo deste terceiro termo, em sua dupla função de dissociação redutora e de reintegração, ou em outras palavras, de análise e de síntese.

A função de dissociação, de redução ou de separação, em outras palavras a função analítica, é a primeira que está ligada aos sentidos e particularmente à vista. Ligada assim aos sentidos, ela estabelece a distância no mundo, a amplitude, ou a extensão, que é, por sua vez, de essência quantitativa, ou seja, a possibilidade de mensuração quantitativa em conformidade com a própria natureza do espaço.

A função de síntese, de integração, retoma a amplitude, a extensão, a quantidade, lhe auferindo uma nova propriedade: afinal, da separação se pode ordenar, se hierarquizar, e deste modo se atribuir qualidades ao mundo. Pela atuação destas funções, de análise e de síntese, a relação original Sujeito/Objeto, ou melhor posto Corpo/Mundo, pode vir a se amplificar e se intensificar, vindo a se constituir em uma proporção do tipo Objeto/Mundo = Sentido/Corpo.

Nessa forma algébrica da proporção, Abellio chama a atenção para o sinal de igualdade, dois traços superpostos, e lembra que este deve ser entendido como um símbolo da necessária leitura simultânea de duas razões ou relações, em lugar de sua leitura linear ou em sucessão.

Entretanto, para esta leitura simultânea, é preciso que a consciência se transfigure de uma consciência empírica, dotada de um modo de visão adequado para a percepção de razões, ou relações de termos, para uma consciência transcendental, dotada de um modo adequado para a efetivamente ver proporções.

É evidente que a Razão, como seu próprio nome indica, tem seu campo limitado à visão de relações ou de razões. Por conseguinte, cabe a consciência transcendental iluminar e orientar a Razão ou o logos, de acordo com sua capacidade de analisar e sintetizar o mundo. Neste exercício permanente do logos, perscrutando o mundo sob a conduta intensiva e voluntária da “visão”, pode-se efetivamente passar da simples análise e síntese de relações à análise e síntese de proporções.

Ao empregar o termo logos, ou sua tradução latina ratio, cabe lembrar que a atividade analítica que separa e divide e a atividade sintética que reúne e liga, se encontram sob as duas séries de significações do verbo legein; do qual derivou logos, significando razão e linguagem. Alguns autores como Michel Fattal pensam que Parmenides determinou o destino do Ocidente, não somente pelo fato de atribuir ao logos o poder de dizer a verdade, mas igualmente pelo fato de lhe conferir o poder racional de separar o ser do não-ser a fim de ascender à “ideia clara e distinta”, àquela da pureza do ser ( Fattal, 1987, p. 14 ).

Ainda para uma melhor compreensão do pensamento que estamos procurando apresentar, seria preciso retomar algumas questões, como as noções clássicas de razão ou relação, e de proporção. Desde os pitagóricos, certas correntes filosóficas, vêm tentando promover a “visão” para que esta conduza a Razão em direção ao sentido da Unidade, especialmente através do pensamento matemático.

Neste sentido, os pitagóricos acreditavam que seria possível uma aproximação da compreensão da Unidade, através de uma sucessão de relações proporcionais. Uma proporção, como vimos, é formada por razões, e uma razão é uma comparação entre diferentes tamanhos, quantidades, qualidades, ou ideias, expressa sob a fórmula a/b, ou a:b ( Lawlor, 1991 ).

Uma razão, portanto, constitui a medida de uma diferença, uma diferença para qual pelo menos uma de nossas faculdades sensoriais pode responder. Desta maneira, a razão a:b é uma noção fundamental para todas atividades de percepção.

Uma proporção, entretanto, é algo mais complexo, pois é uma relação de equivalência entre duas razões, quer dizer, um elemento é para um segundo elemento, como um terceiro elemento é para um quarto: a é para b como c é para d, ou a:b::c:d. Logo, a proporção, conhecida entre os antigos gregos como analogia, representa um nível de inteligência mais sutil e profundo que a modesta razão, que é uma resposta direta a uma simples diferença.

Buscando uma maior aproximação da Unidade, os antigos gregos buscaram limitar a proporção a apenas três elementos, ou termos. Assim um elemento é para um segundo elemento assim como o segundo elemento é para um terceiro, ou seja, a:b::b:c. Aqui os extremos são reunidos por um mediador, b. Os gregos a chamavam de proporção contínua de três termos, e isto indica uma inovação na simbolização dos processos de percepção. Nicômaco e outros filósofos consideravam esta como a única proporção que pode ser considerada como uma analogia.

Buscando uma compreensão maior da Unidade, os filósofos gregos descobriram uma proporção com apenas dois termos. Isto ocorre quando o termo menor é para o termo maior assim como o termo maior é para o menor mais o maior, ou seja, a:b::b:(a+b). O termo (a+b) se apresenta assim como uma totalidade ou unidade, composta pela soma dos outros dois termos.

Historicamente, a esta única proporção geométrica de dois termos foi dado o nome de proporção áurea, sendo designada pela vigésima letra do alfabeto grego phi (?), embora conhecida por culturas anteriores. Trata-se de uma proporção; não um número, mas uma proporção, com a pretensão de ser fundada pela, e de estar fundando, a experiência de conhecimento operada pelo logos.

Se considerarmos a proporção de Abellio no seguinte formato Sentido/Corpo = Objeto/Mundo, temos uma verdadeira analogia quando a transformamos em Sentido/Corpo = Corpo/Mundo, onde podemos buscar a proporção áurea, em conformidade com uma visão mais fortemente subjetivista, obtendo a proporção: Sentido/Corpo = Corpo/(Sentido+Corpo).

Por outro lado, partindo de novo da proporção de Abellio, mas desta feita dando a primazia ao mundo: Objeto/Mundo = Sentido/Corpo, podemos obter, dentro do que poderíamos qualificar de uma visão “objetivante”, uma analogia expressa pela proporção Objeto/Mundo = Mundo/Corpo. Em uma visão radicalmente objetivista, podemos chegar até a outra proporção áurea: Objeto/Mundo = Mundo/(Corpo+Mundo).

ABELLIO, R. Manifeste de la Nouvelle Gnose. Paris: Gallimard, 1989.
ABELLIO, R. La Structure Absolue. Paris: Gallimard, 1965.
ABELLIO, R. Approches de la Nouvelle Gnose. Paris: Gallimard, 1981.

ALLARD l’OLIVIER. L’illumination du coeur. Paris: Ed. Traditionnelles, 1977
FATTAL, M.. Pour un nouveau langage de la raison. Paris: Beauchesne, 1987
LAWLOR, R.. “The Measure of Difference. Ratio, proportion, and analogy in mathematics and life”, Parabola XVI(4), 1991

Raymond Abellio