Abellio: gênese do “eu”

Excerto de ABELLIO, Raymond. La structure absolue. Paris: Gallimard, 1965, p. 37-38.

As etapas da gênese do “Eu”: concepção, nascimento, batismo, comunhão, colocam o batismo como percepção da primeira relação e a primeira comunhão como percepção da primeira proporção.

tradução

Entre o momento da concepção e o do nascimento, ou seja, durante a gestação, faço parte das águas indiferenciadas no seio de minha mãe. Não sou ser-no-mundo, mas ser-de-antes-do-mundo. No entanto, já se coloca uma questão: qual é esse “Eu” que aqui fala e que tem ele em comum com este outro “Eu” enterrado em seu limbo? De pronto encontro a contradição ou a ilusão de toda explicação genética, que jamais poderia ser uma explicação radical neste sentido de que é sempre baseada no conhecimento presente disto que a gênese deve justamente explicar. De pronto ME encontro a tratar do incompleto em termos do completo, e digo ingenuamente: Eu fui ou Eu sou ao passo que o Eu resta a ser. É um fato: o Eu que aqui fala é meu Eu atual, tal qual se tornou, e não lança senão um olhar objetivante, e consequentemente alienante, para este embrião que ele foi e do qual jamais conheceu o olhar. E nada, com efeito, ME permite afirmar que o embrião também não teve seu olhar, embora este seja para mim como se nunca tivesse sido. Toda a reserva deve ser feita desde o início sobre o caráter imperfeito da visão deste Eu, que é, poder-se-ia dizer, duplamente ingênuo, no sentido de que é a princípio ingenuamente objetivo, uma vez que vê “meu” embrião desde fora, como um objeto banal semelhante a todos os embriões humanos, e também ingenuamente subjetivo, posto que ela [a visão] está ligada a uma visão “humana”, provavelmente provisória e, em qualquer caso, localizada e limitada a esse embrião. Todo discurso radical sobre minha gênese, isto é, sobre a plena constituição em mim do tempo e da história, será logo assim e então uma tentativa de ME fazer sair desta objetividade e desta subjetividade ingênuas, e pode-se até pensar que essa necessidade que tenho de extrair por toda parte estruturas invariantes, e até mesmos essa confiança intuitiva que faço dessa palavra indefinível de estrutura, só fazem traduzir minha fé na possibilidade de superação. Admitamos no entanto esta palavra, que implica, no limite, a existência para todos os seres de uma gênese de todas as gêneses, ou seja, de uma gênese absoluta cuja visão vivida vem conjuntamente realizar o tempo e aboli-lo, e por momento continuemos a seguir o curso do tempo. Diremos então que é o meu nascimento, no final da gestação, que constitui a segunda etapa da minha gênese, aquela pela qual, por ser posto no mundo, é criada a primeira distância, o primeiro Mit-sein (ser-com) sem todavia que “eu” o saiba. Meu nascimento é uma abertura da transcendência a todos os olhos, mas ainda não aos meus, ele “ME” separa. Então, durante a infância, o poder separador de meus sentidos gradualmente afasta o mundo de mim ou, mais exatamente, intensifica esta mesma transcendência. Nas águas indiferenciadas, nenhuma separação era perceptível para mim; a vida de minha mãe era minha vida, sua morte era minha morte, e meu “Eu”, neste caso, se aboliria com ela. O nascimento empreende esta separação. Ele funda o mundo para-mim, mas de maneira difusa, sob meu olhar ainda deslumbrante e como fascinado, pois para meus sentidos que tateiam e que ainda nem sei que são meus sentidos, este mundo dificilmente ME pertence. Vejo uma série de modos mais e mais complexos no mundo. Existe apenas um só mundo, mas a série de modos do mundo é indefinida. Concordaremos em chamar de batismo o instante onde, nesta série, ME torno consciente de meus sentidos e onde um relacionamento é assim conscientemente percebido por mim entre eu e o mundo. Só então meu olhar se volta para si. Só então ME torno para mim este existente especificado, único e global, que ainda sou, um “Mim” ou um “Eu”. Neste mesmo momento, emerjo portanto de um modo para mim do mundo que ME mantinha imerso para entrar em um outro modo para mim deste mesmo mundo. Saio como sujeito ao passo que ele se separa para mim como mundo de objetos. Tal é nossa definição filosófica de batismo: é o sacramento que nos coloca como sujeito em um mundo de objetos. Na mesma extensão do sentido usual, veremos em seguida como a primeira comunhão intensifica o batismo e como somos colocados por ela, sempre como sujeito, mas desta vez em um mundo de sujeitos.

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