(Abellio, Serant1955)
Quando, na atitude natural que é própria de todos os que existem, “vejo” uma casa, minha percepção é espontânea; é a casa que percebo, não minha própria percepção. Por outro lado, na atitude “transcendental”, percebo minha própria percepção. Porém, esta percepção da percepção altera radicalmente o estado original. O estado vivido, inicialmente ingênuo, perde sua espontaneidade precisamente porque a nova reflexão toma como objeto o que era estado inicial e não objeto. Entre os elementos da nova percepção, figuram não apenas os da casa como tal, mas também os da percepção como fluxo vivido. E o que importa essencialmente nesta “alteração” é que a visão concomitante que tenho, neste estado bireflexivo ou reflexionado-reflexivo, da casa que foi meu motivo original, longe de se perder, afastar ou se confundir devido à interposição da “minha” percepção secundária diante de “sua” percepção primária, paradoxalmente se intensifica, torna-se mais clara, mais presente, mais carregada de realidade objetiva do que antes.
Enfrentamos aqui um fato injustificável pelo pura análise especulativa: o da transfiguração da coisa como fato de consciência; o de sua transformação, como diremos mais tarde, em «supercoisa»; o de sua passagem do estado de ciência para o estado de consciência. Esse fato geralmente não é reconhecido, embora seja o mais impressionante de toda experimentação fenomenológica real. Todas as dificuldades enfrentadas pela fenomenologia vulgar e, claro, todas as teorias clássicas do “conhecimento”, residem no fato de considerarem a dupla consciência-conhecimento (ou mais exatamente, consciência-ciência) como capaz de abarcar, sozinha, a totalidade do vivido, sendo que deveríamos considerar, na verdade, a trilogia conhecimento-consciência-ciência, única forma que permite um enraizamento realmente ontológico da fenomenologia.
De fato, nada pode revelar essa transformação, exceto a experiência direta e pessoal do próprio fenomenólogo. Ninguém pode afirmar ter compreendido verdadeiramente a fenomenologia transcendental se não praticou com êxito esse experimento e não foi ele próprio “iluminado” por ele. O dialético mais sutil, o lógico mais perspicaz, se não viveram essa experiência e não viram, portanto, outras coisas por detrás das coisas, só poderão tecer discursos sobre a fenomenologia, mas não assumir uma atividade verdadeiramente fenomenológica.
Um exemplo mais concreto: desde o mais remoto de minhas memórias, sempre soube distinguir cores: azul, vermelho, amarelo. Meus olhos as viam; eu tinha delas a experiência latente. Claro, “meus olhos” não se questionavam sobre elas e, de resto, como poderiam formular perguntas? Sua função é ver, não se ver vendo. Mas meu cérebro estava como adormecido; não era de forma alguma o olho do olho, mas apenas uma extensão desse órgão. Assim, dizia quase sem pensar: “este é um belo vermelho, ou um verde um tanto apagado, ou um branco brilhante”.
Um dia, há alguns anos, passeando pelos vinhedos que se estendem em cornija sobre o lago Leman, um dos cenários mais belos do mundo, tão vasto quanto o “Eu”, que, ao se dilatar, sente-se dissolvido nele e bruscamente se recupera e se exalta, ocorreu um acontecimento súbito e extraordinário para mim. Eu havia visto cem vezes o ocre da vertente abrupta, o azul do lago, o violeta das montanhas de Sabóia e, ao fundo, os glaciares resplandecentes do Grand Combin. Soube pela primeira vez que jamais os havia realmente olhado, apesar de viver ali por três meses. Desde o início, aquele cenário não havia conseguido ME dissolver, respondia apenas com uma exaltação confusa.
Certo, o “Eu” do filósofo é mais forte que todos os cenários. O sentimento profundo de beleza é apenas a recuperação do “Eu”, que se fortalece ao perceber a distância infinita que o separa daquela beleza. Porém, naquele dia, percebi abruptamente que eu mesmo criava aquele cenário, que nada era sem mim: “Sou eu quem te vejo, e quem ME vejo te vendo, e ao ME ver, faço você”. Esse verdadeiro grito interior é o que o demiurgo lança ao criar o mundo. Não é apenas suspensão em um mundo “antigo”, mas projeção de um “novo”. E naquele momento, de fato, o mundo foi recriado. Nunca tinha visto tais cores, cem vezes mais intensas, matizadas, “vivas”. Soube que havia adquirido o sentido das cores, que renasci às cores, que jamais até então havia realmente visto um quadro ou entrado no Universo da pintura. Mas também soube que, por este chamado à minha própria consciência, por esta percepção da minha percepção, tinha a chave do mundo da transfiguração, que não é um além misterioso, mas o verdadeiro mundo onde a Natureza nos tem “exilados”.
Não há relação com a atenção, certamente. A transfiguração é plena, enquanto a atenção não o é. A transfiguração se conhece em sua suficiência certa, enquanto a atenção aspira a uma suficiência eventual. Não se pode dizer que a atenção seja vazia, claro. Pelo contrário, é não-vazia. Mas a não-vacuidade não é plenitude. Ao voltar ao vilarejo, naquele dia, as pessoas que cruzavam meu caminho estavam em sua maioria “atentas” ao trabalho; porém, todas ME pareciam sonâmbulas.