Watts (DM) – Plantando sementes e colhendo frutos

Só existe sofrimento, ninguém que sofra;
Há o feito, mas não o fazedor;
O Nirvana é, mas ninguém o buscando;
Há o caminho, mas ninguém que o percorra.

tradução

Todo projeto de autotransformação é um círculo vicioso. Dogen, um mestre zen do século XIII, dizia que a primavera não se torna verão e, da mesma forma, a lenha não se torna cinzas: há primavera e então há verão; há lenha e então há cinzas. Pelo mesmo argumento, um ser vivo não se torna um cadáver, e uma pessoa não iluminada não se torna um Buda. Segunda-feira não se torna terça-feira; uma hora não se torna quatro horas. Assim, tentar se tornar um Buda, atingir a iluminação ou a liberação ou o supremo altruísmo, é como tentar lavar sangue com sangue, ou polir um tijolo para fazer um espelho. Como disse Chuang-tzu: “Você vê seu ovo e espera ele cantar”.

O egoísmo de uma pessoa egoísta é precisamente que ela está tentando se tornar mais feliz, mais forte, mais sábia, mais corajosa, mais gentil e, em suma, altruísta. “Não é a sua eliminação do eu”, disse Chuang-tzu, “uma manifestação positiva do eu?” E novamente: “Aqueles que dizem que teriam o certo sem seu correlato, o errado, ou o bom governo sem seu correlato, o desgoverno, não apreendem os grandes princípios do universo, nem a natureza de toda a criação. Pode-se também falar da existência do céu sem a da terra, ou do princípio negativo [yin] sem o positivo [yang], o que é claramente impossível. No entanto, as pessoas continuam discutindo isto incessantemente.” O comentário se aplica igualmente a todos os projetos de auto-aperfeiçoamento por meio de gurus, meditações, prática de ioga, auto-aceitação, psicoterapia e até mesmo o viver-no-presente por inteiro. De tais disciplinas, pode-se aprender apenas que são autocontraditórias, como levantar os dois pés do chão puxando os tornozelos. E nisso há, talvez, algum valor, pois libera nossa energia psíquica e física de tarefas impossíveis para o possível: podemos sim plantar sementes, colher frutos, construir casas, cantar canções, fazer amor e continuar vivendo até pararmos.

Estou apontando isto para melhorar o estado da humanidade, e assim ME contradizendo? Não, estou dizendo isto para que possamos ser livres para plantar sementes e colher frutos. Isto não tem nada a ver com melhor ou pior, progressão ou regressão. Estes são julgamentos, e está bem dito: “Não julgueis, para que não sejais julgados; pois com o juízo julgares, serás julgado, e com que medida medires, serás medido”. E se você disser: “Mas isso é em si um julgamento!” você ainda está julgando. É melhor não julgar? Não, é simplesmente viver e morrer, dia e noite, ir e vir, um estado de coisas em que não há nem o bom em si nem o mal em si.

O Caminho perfeito é sem dificuldade,
Desde que evite pegar e escolher.
Só quando você parar de gostar e não gostar
Tudo será claramente compreendido. . . .
Não se preocupe com o certo e o errado.
O conflito entre o certo e o errado
É a doença da mente.

É verdade que, enquanto permanecemos na doença da mente, a “doença” é “errada”, e o conflito [errado] persiste. Mas isto ainda é julgar o julgamento, e julgar o julgamento do julgamento — o círculo vicioso e a regressão infinita que os budistas chamam de samsara, a situação da gaiola de hamster de tentar ter vida sem morte e certo sem errado. Tais círculos viciosos não podem ser interrompidos por preparações, métodos ou disciplinas espirituais. Tudo isto são adiamentos. A única maneira de parar é parar — instantaneamente, agora — pela ação, não pelo pensamento. Esta parada pode acontecer, assim como podemos plantar sementes e colher frutos – embora nenhuma ação real seja algo “feito” por um “eu” conceitual. A divisão entre executor e ação, conhecedor e conhecido, é uma divisão de palavras, não de natureza.

Só existe sofrimento, ninguém que sofra;
Há o feito, mas não o fazedor;
O Nirvana é, mas ninguém o buscando;
Há o caminho, mas ninguém que o percorra.

Em suma, a questão é que todo projeto de retificação do mundo ou de si mesmo é uma fantasia conceitual, porque, enquanto permanecemos no mundo dos conceitos, não podemos identificar o certo sem o contraste com o errado. Isto é tão verdadeiro politicamente quanto psicologicamente, pois seguir ideologias de direita ou de esquerda desvia nossa atenção de problemas específicos, assim como projetos de melhoria do mundo nos desviam de plantar sementes e colher frutos. Em nome de tais projetos, obliteramos populações inteiras para sua própria libertação, amontoamos criminosos em prisões para sua reabilitação e isolamos insanos em asilos na esperança desesperada de que isto de alguma forma os torne sãos.

Assim, os chamados negros têm uma coisa contra os chamados brancos [prefiro o contraste de colorido e descolorido] porque os brancos judaico-cristãos equiparam o preto com o mal e a cruzada por um cosmos absurdo em que haverá direita sem esquerda. Infelizmente, as pessoas de cor foram infectadas com esta religião e estão lutando [compreensivelmente] por algo mais do que direitos iguais. Mas quanto mais nos envolvermos em possíveis debates entre o certo e o errado destes problemas, mais destruiremos uns aos outros para nosso próprio bem e negligenciaremos o plantio de sementes e a colheita de frutos.

A “doença da mente” é a confusão do que pode ser dito, ou pensado, com o que pode ser feito e com o que realmente acontece. O solver desta confusão vem com ser/estar-ciente, não com o pensamento, mas é frustrado pelos projetos de ser/estar-ciente e não pensar, ou melhor, suspender o pensamento. A ideia de que é melhor, ou “a meta”, livrar-se desta confusão ainda é confusão e é chamada de o fedor do Zen. Os conceitos de saúde e doença, bem e mal, melhor e pior, têm o mesmo uso e relação com a vida que os de longo e curto, alto e baixo para carpintaria: mesmo um pequeno pedaço de madeira pode ter três polegadas de comprimento. Até o câncer é chamado de crescimento, e quando Ramana Maharshi estava morrendo de câncer, ele resistiu aos médicos, dizendo: “Ele também quer crescer. Deixe-o.” Este é, talvez, um exemplo extremo de renúncia – não de amor ou energia – mas de querer o certo contra o errado e, assim, renunciar à própria separação de tudo o que acontece, que é o que Tillich chamou de “a coragem de ser”.

Esta atitude pode ser chamada de fatalismo em que, no entanto, não há um destino: as próprias reações subjetivas de cada um são todas de uma peça com o que, objetivamente, acontece – e, portanto, você não se intromete no mundo. Esta é a atitude taoísta de wu-wei, de não interferência com o Tao, o Curso da Natureza. No entanto, wu-wei não é um preceito ou um método a ser seguido ou não: é a percepção de que você mesmo não é algo separado do Tao que pode ou não interferir nele. Experimente sua própria decisão como um evento que acontece como a abertura de um botão de flor.

Esta súbita virada de conscientidade é como olhar para pinturas não objetivas ou abstratas como se fossem fotografias coloridas — podem ser marcas em mármore ou plantas microscópicas. Instantaneamente, toda a qualidade da pintura muda: ela se torna tridimensional e vividamente articulada. Ainda mais notável é a mudança quando a experiência subjetiva é tomada como algo acontecendo por si mesmo, como o vento, ou – o que dá no mesmo – quando a experiência objetiva é tomada como algo que você está fazendo, como respirar.

Original

WATTS, A. Does it matter?: essays on man’s relation to materiality. Novato, Calif.: New World Library, 2007.
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