Alan Watts Amor

Excerto do livro “A Vida Contemplativa”

O desejo humano difere do animal por ser, no fundo, insaciável. O homem se caracteriza por uma fome de infinito, de uma eternidade de vida, amor e alegria que, saiba-o ele ou não. Não pode ser outra coisa que não Deus. Admitindo-se a existência de Deus, conclui-se ser Ele o objetivo final, verdadeiro, do homem, pois o apetite de um organismo vivo revela a sua função. O estômago anseia por alimento porque sua função é digeri-lo. A fome e o paladar físicos podem por vezes enganar-se quanto ao seu verdadeiro objetivo, desejando exclusivamente caviar em lugar de uma dieta equilibrada; o homem, da mesma forma, por vezes se ilude quanto ao seu objetivo na vida, almejando riqueza, poder ou prazer físico ao invés de Deus. Mas seu verdadeiro “apetite” continua a ser Deus, para o qual esses objetivos secundários não passam de meros e insatisfatórios substitutivos. Aqueles que se impõem objetivos finitos estão sempre insatisfeitos, pois precisam ter sempre mais e mais daquilo que desejam, sentindo-se frustrados e miseráveis quando tal não ocorre. A satisfação profunda somente é sentida pelos animais e entes primitivos, nos quais a fome infinita ainda não foi despertada, e também pelos santos e místicos, que realizaram a união com Deus. É por isso que, sendo conhecido ou desconhecido, Deus é o objetivo final do desejo humano, seja esse desejo altamente espiritual ou flagrantemente sensual. “Mesmo no meio dos mais baixos prazeres, o mais dissoluto epicurista está sempre procurando Deus; e mais ainda, no que se refere ao sentido positivo dos seus atos, isto é, em tudo que os torna análogos ao verdadeiro Amor, é o próprio Deus quem, nele e para ele, busca a Si próprio”.1

Admitindo-se, também, que Deus é amor, o objetivo do amor é sempre a união com o seu objeto. Se o homem é, portanto, uma criação e um objeto do amor divino, a união com Deus é, analogamente, o verdadeiro objetivo final do homem sob o ponto de vista divino. Sob esse mesmo ponto de vista, o verdadeiro objetivo final de todas as criaturas — e não somente do homem — é a união com Deus, mas somente no caso do homem esse objetivo se tornou consciente. Somente o homem pode amar a Deus conscientemente; as outras criaturas são atraídas para Ele cegamente, sem qualquer interferência no assunto.

O amor consciente de Deus somente é possível de ser exercido por uma alma livre. Em um sentido, o homem ama inevitavelmente a Deus porque o finito natural e necessariamente anseia ou tende para o infinito; entretanto, o finito, por seu próprio poder, jamais pode atingir ou envolver o infinito. Por mais alto que se suba ou voe, jamais se consegue atingir o céu. Deus está fora do alcance do amor natural {eros), embora este aponte para Ele. O homem, entretanto, está capacitado para um outro tipo de amor que permite atingir Deus, o qual, de acordo com a útil distinção de Nygren, chamaremos de agape.2

A diferença entre os dois é que, enquanto eros traduz um desejo possessivo de absorver Deus, agape é um desejo deliberado, consciente e livre de se dar a Deus. O homem é capaz desses dois tipos de “amor e deseja ambos, eros e agape, para se engrandecer e se perder, para absorver o infinito e mergulhar no infinito. Mas uma auto-dedicação tão absoluta é um poder da liberdade somente. O amor sob compulsão é eros — nunca agape — daí a razão de um casamento feliz jamais poder ser feito sob a influência de um afrodisíaco. A aquiescência a uma união de almas tão profunda deve ser espontânea. O homem é, portanto, capaz de agape; o tipo de união com Deus a que está destinado é de um nível particularmente alto, uma união de amor recíproco, um casamento espiritual. A união do homem com Deus deve ser mutuamente voluntária. A união de criaturas inferiores com Deus é voluntária apenas da Sua parte. Mas o eros não pode atingir o seu objetivo sem o agape.

Quando dizemos que o homem é feito à imagem de Deus, queremos dizer que ele é livre. Esta é uma das mais profundas intuições humanas, e que somente pode ser contestada ao preço da submissão do pensamento racional. Se você argumenta que não tem liberdade, deixa implícito que foi compelido a argumentar desse modo e que, assim, sua opinião não é uma decisão racional e livre, mas um mecanismo compulsivo de significação semelhante à de um tique nervoso. Todo pensamento e ação racional presume uma relativa liberdade de arbítrio.

A liberdade de amar a Deus, de se dar a Deus, envolve também a liberdade de não amar. Se uma alma livre recusa o agape, ela se submete à dominação do eros, que, embora em si não contenha nada de mal, adquire maldade quando escolhido livremente de preferência ao agape. O homem baixa de condição quando prefere o desejo natural ao amor espiritual como princípio de vida; ele submete sua liberdade, seu próprio espírito, ao desejo ardente, insaciável e sempre frustrado de sua alma natural e se torna temporariamente incapaz do agape. O agape, entretanto, é Deus; o agape no homem é, portanto, a presença de Deus no homem, que, recusada, torna impossível amar a Deus, porquanto Deus só pode ser amado com Seu próprio poder e Seu próprio amor, existentes na alma humana.

Todos os problemas, todos os males da vida humana provêm dessa recusa em amar a Deus, e não podemos dizer quando isso se verificou pela primeira vez nem por que aconteceu. Sabemos apenas que nos encontramos atualmente em uma situação de malignidade, que nossa liberdade de amar a Deus está inibida e completamente sob o domínio de eros. Não podemos absolutamente dizer por que o homem optou por não amar a Deus, pois quando fazemos esta pergunta estamos buscando uma causa necessária e suficiente para essa recusa. Esta, porém, foi um ato livre e, no domínio da liberdade, não há causas necessárias, porquanto não há necessidade nem determinismo. O princípio desse mal, a recusa em amar a Deus, não é uma ação inteiramente original, espontânea e livre. Dizer-se que é causada pelo orgulho equivale apenas a dizer que é o orgulho.3

Isto, sem dúvida, não é uma solução para o problema da origem do mal, para o qual, aliás, não há solução conhecida e sobre o qual as especulações não têm consequência prática. Compreender a origem do mal não implica estar livre dele. A origem está em nosso íntimo e não a podemos ver e examinar, da mesma forma que não podemos virar-nos e olhar em nossos próprios olhos.

Nossa preocupação é com os resultados presentes dessa recusa, que nos são bastante familiares. Sabemos, por experiência, que não há absolutamente nada que possamos fazer para amar a Deus, para colocarmo-nos em Suas mãos com absoluta e devoção, pois cada tentativa que fazemos nesse sentido é frustrada por um motivo egoísta. Todos os nossos esforços em prol de uma vida espiritual são instigados pelo auto-interesse.


  1. Etienne Gilson, The Spirit of Mediaeval Philosophy. Londres, 1936, pág. 274. 

  2. O uso dos vocábulos eros e agape para indicar esses dois tipos de amor é puramente moderno. No grego koine e clássico, essas palavras não fazem tal distinção e, na literatura bíblica, agape se refere a ambos os tipos de amor. Cf., João 3:16 e I João 2:15. Para maiores esclarecimentos, ver Nygren, Agape and Eros 3 vols. Londres, 1932, 1938 e 1939. — vide Agape e Eros 

  3. É análoga à própria ação criadora de Deus, uma vez que a liberdade do homem é uma delegação da própria liberdade de Deus. O pecado é um ato que a pessoa comete com o próprio poder de Deus; ela tem de usar Deus para recusar Deus

Alan Watts (1915-1973)