Símbolos
Excerto de A Vida Contemplativa

Inicialmente, vejamos algumas das tendências que requerem síntese. Comecemos, obviamente, pela tese e a antítese que têm, até agora, dominado a nossa cultura — o catolicismo, de um lado, e o humanismo e o protestantismo, de outro. Essas doutrinas representam, respectivamente, o mythos da vida, que está na origem da nossa cultura, uma apreensão simbólica de revelação das mais profundas realidades espirituais, e o movimento negativo que destrói a “casca” exterior do mythos a fim de que possamos ter consciência do seu conteúdo interior. Entre esses dois elementos opostos, há outros problemas nem sempre ou necessariamente considerados, mas não menos fundamentais para a nossa cultura e para a vida humana em geral.

Há a tensão já mencionada entre a santidade e a existência física, que é expressa pelo conflito entre o misticismo ascético católico medieval e o humanismo, ou entre o puritanismo protestante e o romanticismo liberal. Justamente aí está o problema moral básico da vida cristã. Relacionada com ele está a oposição do transcendentalismo e do imanentismo, que encontra expressão em todo um complexo de conflitos: teologia oficial versus misticismo, espiritualismo versus sacramentalismo, catolicismo tradicional versus humanismo e maniqueísmo versus a religião da Encarnação. Embora tenham recebido toda a atenção tanto dos filósofos modernos como dos medievais, as soluções oferecidas são mais de transigência do que de síntese.

Há, ainda, a tensão familiar entre a lei e a graça, as obras e a fé, a disciplina e a espontaneidade, a técnica e a inspiração — a síntese das quais é da maior importância para a existência da moral e da vida espiritual. Aliado a essa tensão, assim como também à oposição do transcendentalismo e do imanentismo, há um outro complexo de tensões: entre a religião formal e a religião sem formalidade, entre o culto ritual, litúrgico e a simples “prática da presença de Deus”, entre a vida em função da religião e a religião em função da vida.

A filosofia e a teologia sozinhas jamais resolverão esses problemas; podem, quando muito, ser bem sucedidas somente enquanto forem os instrumentos da vida mística, da realização da união com Deus. Aí reside, portanto, o trabalho supremo da época à nossa frente — a compreensão interior dos grandes símbolos cristãos de que a vida divina que contêm pode vir a se tornar consciente, de que o mythos católico pode revelar os segredos da união com Deus. Para que não haja qualquer mal-entendido, é bom que fique perfeitamente claro que o uso dos termos “símbolo” e “mythos” não implica que o dogma cristão seja mero símbolo e mero mito. Não estamos sugerindo que a interpretação literal da Fé deva ser substituída por uma interpretação mística, mas que o elemento místico deve ser extraído do litoral e coexistir com este último. Não estamos preocupados em debater aqui a historicidade dos grandes eventos da vida de Cristo, nem se Ele era ou não, de fato, a encarnação do Filho de Deus. Mesmo que se aceitem todos esses eventos e todas as afirmações da Igreja sobre Cristo como realmente verdadeiros, eles não deixam, entretanto, de ser símbolos; são eventos simbólicos que revelam a natureza de Deus e o modo pelo qual o homem realiza a união com Ele.

Afinal, o mais importante sobre Cristo não é a sua aparência exterior, mas o seu caráter interior. Assim, da mesma forma, o importante sobre os eventos não é como se verificam, mas sim o que significam. Seria, sem dúvida, possível dizer-se que, mesmo que toda a história de Cristo e todos os dogmas da Igreja a seu respeito fossem puro mito, seria, não obstante, um mito implantado na alma humana por Deus, surgido da inconsciência racial sob a direção do Espírito Santo. Ter-se-ia também de dizer que o mito era obra de Deus e não um sonho puramente subjetivo de concretização de um desejo de origem estritamente humana. (NA: É estranho que os protestantes liberais, que negam a historicidade de eventos tais como a Ressurreição e a Concepção Espontânea, assim como a Divindade de Cristo, jamais tenham compreendido essa teoria. Eles ainda insistem em basear sua religião em fatos históricos, por mais pobres que sejam. Contudo, a fim de dar sentido à sua muito empobrecida forma de religião (o que pareciam pretender), os protestantes liberais são logicamente propensos a mostrar não somente que o catolicismo não tem fundo histórico, mas também que, como um mito, não é uma revelação divina.)

Uma quantidade enorme de energia espiritual foi gasta e a unidade cristã perdida em debates sobre se esses eventos simbólicos haviam realmente acontecido. Admite-se que se trata de um assunto importante; muito mais importante, no entanto, é compreender o seu significado. E se os incrédulos pudessem ser esclarecidos quanto ao sentido interior desses eventos, estariam assim muito mais preparados do que de outro modo para aceitar a sua veracidade real.

A finalidade geral do símbolo e do mythos, que é o sistema de símbolos, consiste em conduzir-nos até o próprio Deus, da mesma forma que a finalidade da linguagem é expressar um sentido e não apenas palavras. Deus — o Sentido tanto do Universo como do mythos — tem vida; como o vento, a água corrente, o fogo, Ele não pode ser contido em uma forma rígida. Assim, a forma simbólica contém a vida de Deus tanto quanto uma bolota contém um carvalho. Com o tempo, se a bolota não estiver seca, morta, sua casca se romperá, dando nascimento a uma árvore, que se desenvolverá e não mais poderá ser encerrada em uma noz. Deus, analogamente, dá Sua vida aos homens através dos símbolos e dos sacramentos, mas se essa vida é para ser verdadeiramente vivida, não pode permanecer confinada nessas formas ou em quaisquer outras; ela usará formas, expressar-se-á através de formas, mas não será mantida nessas formas.

Aí reside a grande dificuldade de se passar do símbolo e da idéia para o próprio Deus. Acontece que Deus é pura vida e nós nos sentimos aterrorizados com tal vida, porque não podemos segurá-la ou possuí-la e não sabemos o que ela fará conosco. “É terrível cair nas mãos do Deus vivo”. Em vista disso, estamos sempre procurando possuí-lo, seja sob certa forma de sentimento exaltado ou talvez através de alguma pequena e simples fórmula teológica, ou ainda mediante um ato ritual que possamos realizar — ou abandonar. Dessa mesma forma, estamo-nos sempre apegando ferozmente à vida, protegendo-nos com todos os tipos de convenções, elementos de segurança, hábitos rotineiros, preconceitos e esperanças. Mas, quanto mais nos apegamos, mais deixamos de viver; quanto mais diligentemente evitamos a morte, mais, na verdade, evitamos a vida. Temos receio da verdade de que estamos sendo arrastados pela vida de Deus, como em uma forte torrente, que nos arrebata de nós mesmos, levando-nos para o oceano do próprio Deus. Em conseqüência, agarramo-nos desesperadamente aos troncos flutuantes ou nadamos com todas as nossas forças contra a corrente, sem ver que isso resulta em nada a não ser em nosso próprio desconforto e exaustão.

O símbolo revela Deus, mas, quando usado indevidamente, O esconde. Uma idéia, uma doutrina, um sacramento, um exercício espiritual ocultam Deus quando os usamos como um meio de retê-Lo, isto é, quando os usamos como uma técnica conveniente e confortável de obtenção da santidade, por imitação. A religião, usada desse modo, transforma-se em uma série de idéias, sentimentos, boas ações convencionais e espiritualidade também convencional, completamente divorciados da vida real, o que por um lado quer dizer Deus e, por outro, as ações quotidianas: andar, comer, respirar, plantar batatas, escrever cartas, olhar os pássaros, amar a esposa e os filhos e. . . tomar banho. “Cada momento”, escreveu Dom John Chapman, “é uma mensagem da vontade de Deus; cada evento exterior, tudo que ocorre fora de nós mesmos, e até mesmo cada pensamento e sentimento involuntário dentro de nós é um toque do próprio Deus”. Temos, entretanto, medo desse toque, pois pode queimar, pode matar. Em vista disso, deixamo-lo circunscrito em um modelo religioso convencional. Ao invés de nos entregarmos total e abertamente à posse mística de Deus, à realidade, e ao invés de nos confiarmos ao Espírito vivo como ele se dá a nós a cada momento, apegamo-nos desesperadamente a esses símbolos e ídolos, estabelecendo outros de nossa própria feitura quando os antigos se quebram.

O símbolo é a semente da vida divina e como o próprio homem é também uma semente, uma criança sob a proteção de sua mãe, ele precisa ter um símbolo; e esse símbolo deve continuar a existir porque sempre haverá almas necessitando de religião sob essa forma. Para os milhares e milhares de almas que vivem no mundo moderno e que já ultrapassaram aquele estágio, aquilo que o Evangelho diz que é verdade com relação à semente também o é no simbolismo católico — “Em verdade eu vos digo que, se o grão de trigo, caindo por terra, não morre, fica estéril; mas, se morre, produz muito fruto”. Ou então, segundo as palavras de São Paulo: “O que tu semeias não pode vicejar, senão depois que tiver morrido”.

Para o literalista, o obscurantista, o idolatra de símbolos, isso é sem dúvida chocante. Os discípulos de Cristo ficaram igualmente chocados quando Ele se comparou ao grão de trigo que devia morrer. “Ouvimos dizer”, protestaram, “que Cristo subsistiria para sempre; como então disseste que o Filho do Homem deve ser exaltado?” Nós também ouvimos dizer que a fé católica, interpretada e compreendida “oficialmente”, será sempre a mais completa exposição dos mistérios de Deus que podem ser encontrados na terra. Isso é realmente verdadeiro desde que se acrescente — a mais completa exposição simbólica. Mas para inúmeras almas — não todas — esses símbolos devem morrer ou já morreram para o fruto do seu significado, para que possam liberar a vida de Deus que existe em seu interior. Assim, as perdas, os ataques, o enfraquecimento da fé que a Igreja tem sofrido são uma parcela da Paixão de Cristo. A fé dos cristãos, sob as rígidas formas do dogma, é abalada e despedaçada para que seu conteúdo vivo possa ser descoberto — para que através da sua morte corpórea a Igreja e a sua fé possam “renascer com Cristo” em um corpo espiritualizado, pois o corpo mortal está para o corpo da Ressurreição assim como a fé simbólica está para a realização mística.

Os símbolos são destruídos para nós pela misericórdia de Deus, a fim de que não nos sintamos satisfeitos com coisa alguma a não ser a Sua própria essência divina, por mais sagrado que isso seja. Até a divina humanidade de Cristo teve de ser destruída na cruz, e os símbolos dogmáticos da Igreja não são mais sagrados do que isso. Ao chegar o tempo da destruição, a oportunidade que se oferece é totalmente perdida se sairmos apressadamente em busca de novos símbolos ou se tentarmos refazer os antigos. Tem sido necessário para o homem ocidental e para a Cristandade suportar essa paixão até o fundo amargo do “Senhor, Senhor, por que ME abandonaste”, até sentir que sua vida não tem absolutamente significado. Assim como a Igreja revive a vida de Cristo através do ano litúrgico, também a revive, repetidamente, de forma espiritual; e como Cristo foi crucificado e sua divina humanidade ressuscitou e subiu ao céu, assim os símbolos dogmáticos são destruídos apenas para renascerem espiritualizados e ascenderem a um nível superior de significação. “É conveniente para vós que eu vá porque, se não for, o Paráclito não virá a vós; mas se eu for, eu vo-lo enviarei… Quando vier aquele Espírito da verdade, ele vos há de ensinar toda a verdade”.