ALMA E VIDA
ROberto Pla: Evangelho de Tomé – Logion 98 — É a alma um fundamento impessoal da vida?
O conceito de alma, quer dizer, a ideia de uma consciência de ordem psíquica ou psicofísica que reúne em si mesma todas as vivências, tais como movimentos, percepção, sensação, etc…, e que funciona como centro receptor e distribuidor, explica que se possa dizer que esta consciência, ou alma, é a seda da vida.
Mas se se pode dizer que a alma é a sede, o núcleo transformador e distribuidor da vida que recebe, se poderá admitir, mediante um passo a mais, em forma simplificada, que a alma é a vida do homem; por último, se se chega ainda mais longe, não se poderia negar o direito de cada homem de dizer que a alma é sua vida.
Este é um processo errôneo que seguimos agora em três grandes passos, mas dado que a alma é, quanto ao homem, o veículo da vida em todas suas dimensões, não é difícil entender que a vida e a alma sejam em muitos pontos para a consciência uma só e mesma coisa, e que inclusive, a palavra grega psyche que os textos neotestamentários utilizam com frequência, tenha o duplo sentido de vida e de alma como sede da vida.
Mas esta identificação alma = vida confunde a consciência (a alma), com o poder de exercê-la (vida), está em séria pugna com os ensinamentos do evangelho que não admite mais vida que aquela que o Pai tem em si mesmo, e que por doação possuem também o Filho e as ovelhas que o Filho quer.
Não é momento de esclarecer a diferença que medeia entre a consciência pura, consciência de ser, que é atribuível às ovelhas, ao espírito e a consciência reflexiva, dual, a qual convém à alma. De qualquer forma, a vida é somente uma e não admite a pluralidade que podemos designar, em certo modo, à consciência.
Aplicado ao espírito e a alma o poder da vida, podemos dizer que o espírito do homem — as ovelhas — é vida por causa da justiça, segundo dizia o Apóstolo, enquanto que a alma como a vida que tem é porque a recebe, só se pode dizer dela que foi vivificada, quer dizer, que a alma vive porque recebe a vida e a administra, mas não é sua em propriedade.
Esta ideia da não imortalidade da alma, posto que não tem vida em si mesmo, subjaz em muitos logia de Jesus, e é fácil de comprová-lo. Se a alma não fosse mortal não teria dito Jesus durante sua agonia em Getsemani aquela frase que de nenhuma maneira pode ser tomada em figura: “Minha alma está triste até o ponto de morrer”.
(…)
Pode resultar muito surpreendente para muitos ouvir explicar agora que a alma neotestamentária não é a essência, o eterno, o que fica do homem, tal como o explicava a cultura helenística, e onde a antropologia cristã manifesta aparece influída.
O NT conforma ao homem completo dentro de uma tricotomia formal, integrada por corpo, alma e espírito, e essa é a totalidade do ser de um homem. Dentro dessa totalidade, a alma é o princípio psíquico, um composto de vivências conscientes no qual se decidem a vida e a morte. A este conjunto é ao qual o espírito, o Ser, o Eu real, apela quando diz minha alma.
A alma é o campo da batalha onde é possível culminar a obra evangélica da ressurreição do espírito que vive morto, relegado, na alma. Mas para lograr tal ressurreição, a alma tem que essencializar-se, reduzir-se a ser sua própria essência, trabalho que a exige sobrepassar os limites fronteiriços da alma com o espírito.
Para realizar esse difícil trabalho de sucessão, conta a alma com a ajuda da Palavra de Deus, mais cortante que qualquer espada de dois fios. Esta ajuda se exerce com absoluta eficácia, não só com a Revelação transmitida por Jesus em seu evangelho, senão também com o que o revela, gota a gota, o Cristo interior, preexistente.
Assim é como a alma que morre todos os dias um pouco, termina por engrandecer a Deus, pois com Deus se une o espírito ressuscitado, e com ele, a vida fica a salvo.
Isso é o que diz o evangelista Lucas em seu Magnificat (Miriam):
Engrandece minha alma ao Senhor
e meu espírito se alegra em Deus meu Salvador.