Usas um vestido
Que é uma lembrança
Para o meu coração.
Usou-o outrora
Alguém que me ficou
Lembrada sem vista.
Tudo na vida
Se faz por recordações.
Ama-se por memória.
Certa mulher faz-nos ternura
Por um gesto que lembra a nossa mãe.
Certa rapariga faz-nos alegria
Por falar como a nossa irmã.
Certa criança arranca-nos da desatenção
Porque amamos uma mulher parecida com ela
Quando éramos jovens e não lhe falávamos.
Tudo é assim, mais ou menos,
O coração anda aos trambulhões.
Viver é desencontrar-se consigo mesmo.
No fim de tudo, se tiver sono, dormirei.
Mas gostava de te encontrar e que falássemos.
Estou certo que simpatizaríamos um com o outro.
Mas se não nos encontrarmos, guardarei o momento
Em que pensei que nos poderíamos encontrar.
Guardo tudo,
(Guardo as cartas que me escrevem,
Guardo até as cartas que não me escrevem —
Santo Deus, a gente guarda tudo mesmo que não queira,
E o teu vestido azulinho, meu Deus, se eu te pudesse atrair
Através dele até mim!
Enfim, tudo pode ser…
És tão nova — tão jovem, como diria o Ricardo Reis —
E a minha visão de ti explode literariamente,
E deito-me para trás na praia e rio como um elemental inferior,
Arre, sentir cansa, e a vida é quente quando o sol está alto.
Boa noite na Austrália!
Álvaro de Campos: Viver é desencontrar-se consigo mesmo (17-6-1929)
TERMOS CHAVES: vida – zoe – bios
- Pessoa : Subsolo
- Pessoa (LD:118/326) – sonho a vida real
- Pessoa (LD:162) – o homem de ação
- Pessoa (LD:163) – A experiência direta…
- Pessoa (LD:163) – falta de imaginação
- Pessoa (LD:164) – inação consola tudo
- Pessoa (LD:301) – alma – sensação
- Pessoa (LD:364) – não possuo o meu corpo
- Pessoa (LD:43) – a distância entre mim e o meu fato
- Pessoa (LD:78/124) – viver a vida em Extremo