Idade Média — AMOR CORTÊS
VIDE: FIÉIS DO AMOR
CRISTOLOGIA
Mestre Eckhart: MINNE — (CHARITAS, DILECTIO, AGAPE) (Caridade, Amor)
Excertos do glossário do tradutor, Enio Paulo Giachini, da ótima versão portuguesa dos “Sermões Alemães” de Mestre Eckhart
Seguindo a grande tradição cristã, Eckhart define a essência, o âmago visceral de Deus, a deidade, como amor. O termo usado no alemão medieval de Eckhart para Liebe (amor) é Minne. A palavra Minne possui parentesco com o grego menos (sentido), mimneskein (recordar-se), com latim memini (lembrar-se), mens (mente), monere (admoestar). A raiz indogermânica men, que está em todas essas palavras, significa pensar. Pensar, aqui, é estar suspenso, solto-disposto na espera, de vivo coração. Nessa acepção do termo pensar como a liberdade de disposição da cordial jovialidade, Minne conota o ter presente viva e amorosamente na mente[[Mens (-tis), nous, mente, é o nível de liberdade, o mais alto no ser humano, o seu ápice, no e através do qual o ser humano é tocado por Deus e penetra para dentro de Deus. Cf. Itinerarium mentis in Deum, de São Boaventura.]], sem cessar, recordar, isto é, avivar de novo no e do âmago do ser a cordialidade amorosa. Ceia íntima, recordando e comemorando um encontro amoroso se diz em alemão Minne trinken (beber a Minne)[[Em grego é agapé, a ceia do encontro de amor, termo assumido pelo cristianismo para indicar o amor de doação livre e cheio de bem-querença de si de Deus (em latim charitas e dilectio) e lembra a última ceia de Jesus no Novo Testamento, na qual o mesmo lavou os pés dos apóstolos.]] Originariamente Minne designava amor misericordioso, de diligente cuidado, isto é, o amor de predileção e benevolência interpessoal de tu para tu. Assim, Minne era uma palavra boa para indicar a intimidade do nobre enamoramento em total doação ardente de corpo e alma no encontro entre homem e mulher: o amor esponsal. E dali Minne começou a ser usada na “mística” dos cavaleiros medievais dos séculos XII e XIII para indicar o protótipo da paixão nobre de dedicação no amor de um cavaleiro para com a mulher amada, a sua dama. Era o mais intenso móvel de busca para um cavaleiro medieval a incentivá-lo a realizar atos heroicos a serviço e para a honra da sua senhora, a quem doava a vida e o ser como à sua Rainha e Senhora[[As gestas e as canções de gesta. (v. Denis de Rougemont)]]. A partir dessa acepção cavalheiresca do amor, a palavra Minne entra no uso da mística medieval cristã, numa acepção ainda mais radicalizada de doação, nobreza, intimidade, paixão e finura como Gottesminne[[Gottesminne, o Amor de Deus, primeiramente no sentido do genitivo subjetivo e depois no do genitivo objetivo, isto é, amor que Deus tem para conosco e do amor que nós temos, tendo como “objeto” a Deus.]] e se tornou a tonância de fundo da assim chamada Brautmystik (a mística esponsal)[[Cf. São Francisco de Assis e o seu esponsal com a Senhora Pobreza; cf. São BernBernardo de Claraval.]].
PERENIALISTAS
Mircea Eliade: DANTE E OS FIÉIS DO AMOR
No amor cortês, pela primeira vez desde os gnósticos dos séculos II e III, eram exaltados a dignidade espiritual e o valor religioso da Mulher (Muitos textos gnósticos exaltam a Mãe divina, bem como o “Silêncio místico”, o Espírito Santo, a Sabedoria. “Eu sou o Pensamento que habita a Luz, aquele que já existia antes de qualquer outra coisa. Sou ativo em cada criatura (…). Sou o invisível Uno no Todo (…)” — texto citado, por Elaine Pagels, The Gnostic Gospels, PP. 65 s.—. Num poema gnóstico — Trovão, o Espírito Perfeito —, uma força feminina declara: “Eu sou a primeira e a última. (…) Sou a esposa e a virgem. (…) Sou a mãe e a filha” etc. (ibid., p. 66).). Segundo vários estudiosos, os trovadores da Provença foram inspirados pelo modelo da poesia árabe da Espanha, que glorificava a mulher e o amor espiritual que ela desperta. Mas é preciso também levar em conta os elementos celtas, gnósticos e orientais, redescobertos ou reatualizados no século XII. Por outro lado, a devoção à Virgem — que domina essa mesma época — santificava indiretamente a mulher. Um século mais tarde, Dante (1265-1321) irá ainda mais longe: Beatriz — a quem ele conhecera ainda mocinha e reencontrara já como esposa de um fidalgo florentino — é divinizada. Proclama-a superior aos anjos e aos santos, imune ao pecado, quase comparável à Virgem. Beatriz torna-se uma nova mediadora entre a humanidade (representada por Dante) e Deus. Quando Beatriz está prestes a aparecer no Paraíso terrestre, exclama alguém: “Veni, sponsa, del Líbano” (Purgatório, XXX, 11), o famoso trecho do Cântico dos Cânticos (IV, 8) que a Igreja havia adotado, mas que só era entoado em honra da Virgem ou da própria Igreja. Em outros passos (Purgatório. XXXIII, 10 s.), Beatriz aplica a si própria as palavras de Cristo: “Um pouco, e não mais ME vereis; outra vez um pouco, e ver-ME-eis”, João 16,16). Não se conhece outro exemplo tão esplêndido da divinização de uma mulher. Evidentemente, Beatriz representava a teologia e, portanto, o mistério da Salvação. Dante escrevera a Divina Comédia para salvar o homem, trazendo a sua transformação não em amparo de teorias, mas aterrorizando e fascinando o leitor com as visões do Inferno e do Paraíso. Embora não fosse o único, Dante ilustra de maneira exemplar a concepção tradicional que afirma que a arte, a poesia sobretudo, é um meio privilegiado não apenas para comunicar uma metafísica ou uma teologia, mas também para despertar e salvar o homem.