Angelo Guido: Última Ceia de Leonardo da Vinci

Angelo Guido — Símbolos e Mitos na Pintura de Leonardo da Vinci

UNA COSA NATURALE…

Quando confrontamos a Ceia de Leonardo da Vinci, pintada no refeitório de Santa Maria delle Grazie, em Milão, com as de épocas anteriores e, mesmo, com as do seu tempo, notamos, de imediato, como a de Leonardo parece natural, sem artifícios e simples na dignidade de compostura artística do seu conteúdo expressivo e da sua composição. Observando-se a cena ali representada, a figura do Redentor ao centro, os discípulos a se interpelarem uns aos outros, denunciando nos gestos as suas emoções e sentimentos, recebemos a impressão de que tudo se deve ter passado efetivamente assim, com aquela presença imperturbável e doce do divino em Jesus, e com a evidência de humana realidade na maneira diferente de cada apóstolo enfrentar a tremenda revelação de que o Mestre seria traído.

Perante a obra de Leonardo, lembramo-nos daquele tópico dos seus escritos onde diz que deve a pintura parecer «uma coisa natural vista num grande espelho» (Ash. I, 24 v.). Interpretando-se estas palavras superficialmente, seríamos levados a pensar que na Ceia o seu autor limita-se a uma representação realista, ilustrativa, do episódio bíblico, assim como se o vasto mural situado ao fundo do refeitório fosse, apenas, a imagem de um fato real, refletida em grande espelho fronteiro.

Não passaria, por isso, de excelente obra de caráter narrativo, sem nenhum outro mérito transcendente.

O espírito do artista — escreveu Leonardo — «deve assemelhar-se ao espelho que se transforma na cor dos objetos e se enche de tantas aparências quantas há diante dele» (Lu. 58 a). Repare-se que, aqui, ele fala do espírito e não dos sentidos. É o espírito que deve, em si mesmo, com toda fidelidade, como se tivesse a lucidez do espelho, receber as impressões do real, para transmutá-las em arte, penetrando-lhes a essência qualitativa. E eis que esclarece o sentido da imagem no espelho: «O pintor que traduz por prática e julgamento dos olhos, sem raciocínio, é como o espelho, onde se imitam as coisas mais opostas sem conhecimento da sua essência» (ATL. 76 r.a.). Distingue, pois, entre aparência e essência, querendo dizer que é pelo espírito que o artista capta a realidade e penetra a essência qualitativa dos seres e das coisas, isto é, aquela qualidade pela qual o ser de cada coisa se nos mostra em perfeita relação harmônica com a forma na qual se concretiza e se faz aos nossos sentidos perceptível. «A necessidade — afirma o nosso artista — obriga a mente do pintor a transmutar-se na própria mente da natureza, de modo a tornar-se intérprete entre a natureza e a arte» (Lu. 40).

Os sentidos, os concebia como instrumentos pelos quais percebemos o mundo sensível, o qual pode ser medido, analisado nas partes que o constituem, pois que estas pertencem ao reino da extensão; o espírito, porém, que transcende a experiência dos sentidos quando se eleva à contemplação, penetra a essência qualitativa das formas e assim as compreende na qualidade íntima do seu ser.

Ao pintar a figura de Jesus, na Ceia, Leonardo teve em mente a forma humana do Salvador; o caráter de sublime dignidade dessa forma, todavia, tinha seu sentido na plenitude, que devia expressar, da natureza espiritual de Cristo. Como figura humana ideal, devia ser a manifestação, na qualidade da sua específica beleza, da própria harmonia de um ser de exceção, no qual a essência do divino se fizera maravilhosa presença. Era perfeitamente humano, na medida em que essa humanidade atingia a altura do divino.

Deste modo, a figura de Jesus Cristo se tornaria a perfeita adequação entre o Ser e a qualidade da forma que o expressa ou o torna presente em sua pura e imutável natureza espiritual.

Ao conceber a sua obra mestra, Leonardo da Vinci o fazia inspirado por uma ordem de ideias que o afastavam dos conceitos tradicionais a que o tema da Última Ceia fora antes subordinado, não só na Idade Média, mas, igualmente, em seu século, como nos soberbos afrescos de Andrea dei Castagno e Domenico Ghirlandaio. Leonardo reclamava para si o direito de criador, o direito de se libertar de todas as restrições que, por um convencional assentimento, podiam ser impostas ao artista. Ao seu gênio, não podia satisfazer a interpretação do grande motivo com sentido simplesmente narrativo, como talvez desejassem os bons frades de Santa Maria delle Grazie, ou subordinado ao simbolismo eucarístico, tal como inúmeras Ceias foram pintadas, desde que o tema do «Fractio Panis» apareceu na Capela Grega da Catacumba de Santa Priscila, em Roma, no segundo século da nossa era.

Bastará atentar para os conteúdos encerrados na Adoração dos Magos, para darmo-nos conta de que Vinci, ao enfrentar o assunto religioso, não se cingia a uma preocupação meramente narrativa: já nessa obra-prima da juventude as significações prevalecem sobre o elemento descritivo e nos levam para os domínios do simbolismo e do mito. Em relação ao mural de Santa Maria delle Grazie, não se tratava, pois, de pintar mais um Cenáculo, mas de ir ao fundo do empolgante tema, de lhe encontrar e revelar pela arte a transcendente significação, visto que compor e pintar, para ele, era partir de “uma sutil especulação» (Ash. I, 20 r), que lhe serviria de pensamento diretor para inventar a forma.

Antes, a «análise intelectual suprema», a penetração do profundo sentido do que se quer representar e, depois, o trabalho inventivo da composição, seguida pela execução.

O motivo proposto era o da ceia, na qual, pela última vez, Jesus se reunira com os seus discípulos. Não se tratava, evidentemente, de banquete, como o do famoso diálogo de Platão, nem como aquele que, segundo a tradição pitagórica, o mestre de Crôtona realizava, periodicamente, com seus discípulos mais adiantados: tratava-se de ágape sagrado, no qual, entre homens débeis e mortais, para uma missão divina, estava presente quem de si mesmo podia dizer: «Eu sou a Verdade e a Vida». A Ceia, pois, assumia a significação de um mistério.

De que modo um espírito como o de Leonardo poderia enfrentar esse mistério e tentar penetrar-lhe o sentido, é o que buscaremos esclarecer através deste trabalho.

Ao observar a famosa pintura, chama-nos a atenção um centro de luz e de calma na figura do Redentor, em contraste com a dramática agitação dos discípulos. O momento fixado foi aquele em que Jesus acabou de proferir as terríveis palavras: «Em verdade vos digo que um dentre vós ME trairá». Proferiu aquelas palavras e todos se perturbaram, cada um segundo o seu temperamento; o Mestre, porém, baixou os olhos, inclinou docemente a cabeça e permaneceu tranquilo.

Na vasta composição, a sua figura se destaca no centro da cena, um tanto isolada, como aquele que, concentrado em si mesmo e em pleno desprendimento, no meio do turbilhão das paixões permanece em sua paz. Sobre a grande reta da mesa, estendida de uma à outra extremidade da composição, a figura do Redentor, com seu gesto que aceita e abençoa, compõe um triângulo equilátero. Este triângulo, formado pela figura de Jesus em equilíbrio perfeito, está diante de três janelas colocadas na parede do fundo e abertas para uma paisagem de azuladas colinas e inundada de sol. Pode-se observar que a composição foi realizada de modo a fazer convergir todas as linhas da perspectiva para um ponto central, na testa de Jesus.

O mural foi pintado a têmpera e óleo, no fundo do refeitório do convento de Santa Maria delle Grazie, como já foi dito. Dir-se-ia que outra sala, irreal, juntou-se à do refeitório: o olhar continua penetrando no espaço imaginário criado pela perspectiva leonardesca. É1 o espaço de uma sala simples, na qual, ao fundo, estão situadas três janelas por onde a luz penetra e ilumina a cena. A maior, ao centro, cerca de claridade a cabeça do Nazareno. Foi com alto senso de composição e simbólico sentido que Leonardo colocou ali aqueles três retângulos luminosos, através dos quais descortinam-se as delicadas tonalidades de uma paisagem de sossegadas e vastas perspectivas. O observador é obrigado a dirigir-se ao centro do mural e associar a luz que dali se irradia à figura de Cristo. Como a luz da natureza se associa àquela que o Redentor ao nosso espírito sugere, visto ser ele a luz do mundo, também a tranquilidade da paisagem, lá fora, encontra correspondência expressiva com a calma atitude de Jesus no meio da agitação que as suas palavras causaram.

Três paredes, duas laterais e uma ao fundo, compõem a sala. Das paredes laterais pendem tapeçarias em tonalidades mais escuras, as quais, além de estabelecerem contrastes para relevo das figuras e marcarem o pulsar rítmico da composição, acentuam a impressão de fuga das linhas de perspectiva e contribuem para que mais viva pareça a claridade das janelas. Também o teto concorre, com as linhas convergentes das vigas, para a ilusão da perspectiva. Uma grande mesa, coberta de toalha branca com faixas azuis às extremidades, aparelhada para o ágape, atravessa toda a sala, achando-se as figuras do outro lado, defronte ao observador. Apenas dois apóstolos ocupam as cabeceiras, à direita e à esquerda.

Todas as linhas de fuga que compõem a perspectiva da sala convergem para um ponto na testa de Jesus (Última Ceia Gráfico I). Assim, ele se torna, além do centro de esplendor pela luz que o cerca, o centro geométrico do mural e o ponto de irradiação da dinâmica emotiva que flui e reflui de uma à outra extremidade da composição.

A tranquila reunião convocada para comemorar a Páscoa torna-se, de súbito, o conturbado prelúdio do drama predestinado que se vai consumar. O sol, ainda alto lá fora, na doce calma da tarde, alumia os campos e as colinas e uma branda claridade se derrama pelo austero refeitório, apenas adornado por amplas e pesadas tapeçarias. A paz mística da tarde parecia ter invadido o ambiente sossegado; e a presença do Mestre que, havia pouco, em gesto humilde lhes lavara os pés, os dispusera a ouvir palavras divinas, como só pelos seus lábios podiam ser proferidas. De súbito, porém, na calma expectativa, ao partir o pão, a sua voz tão doce se altera e a espantosa traição é denunciada.

São doze os que ali se encontram, sentados à mesa, junto ao Mestre; doze criaturas humanas, diversas em suas virtudes e em seus defeitos, no tipo físico e no temperamento, pela inteligência e a receptividade anímica; doze almas, doze modos de reagir ao impacto das terríveis palavras que acabam de ser proferidas. É o momento de tensão dramática, que colhe e perturba tipos psicológicos diferentes, alguns opostos, como João e Pedro, como Felipe e Tomé; o momento em que cada um é impelido a revelar-se como é, pois que cada um foi tomado de surpresa e está diante daquele que conhece as almas e as suas intenções.

A cena, à primeira vista, pelo que intensamente expressa de um momento dramático, pode se nos afigurar de clima teatral. Se observarmos melhor, porém, chegamos a nos dar conta de que um ritmo interior parece ordenar o tumulto emotivo. A dinâmica da composição foi controlada por um espírito de ordenação matemática, como o foi em relação a um centro geométrico a estrutura arquitetônica da sala. Seis de cada lado do Redentor, os discípulos, se distribuem de três em três, formando quatro grupos, entre os quais a calma figura de Jesus, ao centro, sugere o ponto de repouso no meio do tumultuar das emoções humanas.

Aparentemente, a pintura de Leonardo parece nos querer apresentar apenas um episódio evangélico no seu momento de tensão emocional mas, a composição, tão viva e tão natural na sua aparência, encerra alguma coisa a mais, surpreendente e estranha, além de seu conteúdo narrativo. Um singular traçado geométrico, à guisa, de traçado ordenador, todo penetrado de sutis significações, proporciona e modula a prodigiosa composição.

Pôr em evidência esse traçado e interpretar-lhe as possíveis significações é o nosso objetivo.

Páginas em