O ESTRANHO TRAÇADO
GRÁFICO I — Já assinalamos que ao fundo da sala em que a ceia de Cristo se realiza há três janelas, abertas para a claridade de uma paisagem serena e de indefinidas perspectivas. São os três. pontos mais luminosos do mural. Com a janela do centro, coincide a figura de Cristo. Sobre a mesma abertura, Leonardo colocou um tímpano em arco de círculo, à guisa de enfeite. Parece um detalhe sem maior importância, pois que semelhante enfeite semi-circular ou tímpano era elemento decorativo comum da arquitetura renascentista, alternando-se, sobre as aberturas, com tímpanos triangulares. Na composição de Leonardo, poderia ser interpretado como simples e secundário acessório para quebrar a monotonia da linha horizontal das três janelas e para não deixar tão vazia a parte superior da parede ao fundo. Também poderia sugerir, com a janela centrai, uma espécie de «edícula como a querer acentuar a santidade do Homem-Deus», conforme notou Mario Salmi1. Parece-nos, porém, que o mencionado tímpano, além da intenção compositiva evidente, encerra outra significação, e esta, em nosso entender, de fundamental importância para a descoberta de um traçado geométrico da célebre pintura. Ele está ali como uma espécie de chave.
Chamamos a atenção do leitor para os círculos do Gráfico I: foi, precisamente, a seção de arco situada como enfeite sobre a janela do centro que nos ofereceu o ponto de partida para encontrarmos o bizarro traçado que é objeto do presente estudo.
Para traçar o primeiro círculo ao centro do Gráfico I, colocamos a ponta do compasso naquele ponto da cabeça do Nazareno para o qual convergem as linhas de perspectiva da composição: a figura de Jesus ficou, deste modo, encerrada na circunferência que continua o movimento circular do referido tímpano. Temos, assim, como centro da composição, a figura de Cristo, que forma um triângulo,, parcialmente inscrita num círculo.
Prosseguindo em nossa análise, notaremos que, fazendo centro no mesmo ponto, um segundo círculo pode ser determinado, tangente com a grande reta da mesa e com os ângulos das janelas laterais. Repare-se que a segunda circunferência, além de coincidir com a reta da mesa e os ângulos das janelas, passa pelas mãos do Salvador. Finalmente, um terceiro círculo, de diâmetro AB, é apresentado no mesmo gráfico, tangente, ao alto, com a linha de limite do mural e, em baixo, com a horizontal CD. Temos, deste modo,, em rigorosa proporcionalidade, como a seguir veremos, três círculos concêntricos. Quanto ao maior, de diâmetro AB, há necessidade de apresentarmos alguns esclarecimentos.
Por que o seu diâmetro foi limitado entre as retas EF e CD?
Quanto à reta superior, a razão é evidente: representa o limite do mural ao alto. Em relação à outra reta, parecerá que a traçamos, arbitrariamente, pois tanto poderia estar ali como mais abaixo. Observe-se, porém, que a parte inferior do painel, onde Leonardo, pintara os pés de Jesus e de outras figuras, foi destruída. Ali os frades dominicanos, em 1652, abriram uma porta, a fim de facilitar a entrada ao refeitório. Não fossem as cópias que da obra prima de Leonardo se executaram, como a de Marco Oggiono, Andrea Solário e outros, e talvez nunca se chegasse a saber como era aquela parte da pintura que foi destruída. A cópia de Solário teria sido executada por encomenda do cardeal de Amboise, conselheiro de Luís XII, sob as vistas do próprio Leonardo, entre 1506 e 1507, quando este, após a queda de Ludovico Sforza, voltou a Milão, já sob o domínio do rei de França. A cópia em referência, «extremamente fiel», conforme a classifica Martin-Demézil, executada nas mesmas dimensões do original, 4,20 x 9,10, seria a que se encontra na Abadia de Tongerloo, na Bélgica2.
Foi mediante essa cópia confrontada com outras, que pudemos ;situar os pés de Jesus, conforme deviam se encontrar na pintura original e como estão desenhados em nosso gráfico. Ora, como se verifica no desenho, a extremidade do pé direito do Salvador coincide com a circunferência ali traçada e com a reta CD. Em virtude da mesma circunferência, a altura da composição é determinada pelo diâmetro AB, isto é, pelas horizontais EF, CD.
Considerando o círculo maior, como o que determina a altura da composição, resulta que o seu centro torna-se o ponto de convergência de todas as linhas de perspectiva e aquele em que cruzam as diagonais do grande retângulo EFDC.
Verificaremos, a seguir, quando examinarmos os outros gráficos, que razões várias justificam a reta CD, como reta tomada pelo mestre para o seu traçado diretor, mas, de momento, assinalaremos que, prolongando-se as linhas de fuga das tapeçarias, poderemos obter as diagonais ED e FC, tracejadas, que se cruzam na testa de Jesus, no ponto central da composição.
O círculo maior se justifica também pela circunstância significativa de dividir, à direita e à esquerda, os grupos dos apóstolos de três em três, funcionando, assim, como elemento de traçado diretor. Dentro do círculo, ficam três à esquerda e três à direita da figura central. Os dois outros grupos situam-se fora do círculo indicado, mas incluídos nos semicírculos que se observam no gráfico. Efetivamente, tomando o raio do círculo maior e fazendo, respectivamente, centro em H e J, sobre a reta da mesa, poderemos traçar os indicados semicírculos, incidentes nos pontos M e N da mesa. Torna-se, assim, evidente a estreita vinculação dos três círculos concêntricos e demais elementos do traçado com as linhas mestras da composição, e não só com a estrutura arquitetônica da sala em que a ceia se realiza, mas, igualmente, com a mesa e a própria distribuição rítmica das figuras.
Assinalaremos ainda, para encerrar o exame do Gráfico I, que o raio do círculo é igual ao diâmetro do círculo médio e que a linha da mesa e as semicircunferências, ao cortarem o círculo maior, determinam um hexágono equilátero de ângulos HBJRAP.
Mario Salmi — Il Cenacolo di Leonardo da Vinci e le Grazie, Milano, s/d, pág. 4. ↩
Jean Martin-Demézil — Léonard de Vinci et la Cène de Blois — Em «Etudes d’Art», n.°s 8, 9, 10, contendo as comunicações do Congrès International de Loire, realizado em julho de 1952 (Fig. n.° 2). ↩