Há nos Upanishad uma noção cuja importância não é tão fácil de compreender, e concerne principalmente ao sacrifício, à oferenda em oblação. É a de anna e annada: o alimento e o comedor de alimento. Swâmiji disse-me um dia a seguinte frase, à primeira vista surpreendente, sobre anna e annada: “Se você compreender de que você se alimenta e para que serve de alimento, compreendeu o que deve ser compreendido”. E os Upanishad ensinam: “O Brahman é o que não come nada e não é comido por nada”.
Na dualidade, tal como ela se apresenta e tal como ela deve ser plenamente reconhecida — o outro é um outro —, você tem que comer, devorar todo o tempo, isto é, apropriar-se, tornar seu; e não pode evitar ser, você mesmo, comido o tempo todo, e que o outro, seja lá quem for (ser humano ou fenômeno natural), coma você, ou seja, tente se apropriar de você. A recíproca é forçosamente verdadeira. E quem diz comer, diz, por isso mesmo, digerir, assimilar — e rejeitar. Qual é a melhor maneira de “tomar” de modo pessoal? E comer — visto que faço disso minha própria carne e minha própria substância. Você compreende bem isso. Assinalo de passagem — e apenas proponho que você reflita sobre isso, se esse tema o impressiona — que tocamos aí num dado fundamental e pouco compreendido pelo Cristianismo, o da Eucaristia: “Este é o meu corpo, tomai e comei; este é o meu sangue, tomai e bebei”.
Comer não significa apenas comer cenouras ou batatas. Senão vocês responderiam com muita facilidade à pergunta de Swâmiji: “O que eu como? Carne, peixe, espinafre e ovos. Mas, então, pelo que eu sou comido? Bem, hoje eu não vejo muito bem, mas serei comido pelos vermes quando for reduzido à condição de cadáver”. Mas vocês não são compostos apenas de um corpo físico; são compostos de cinco koshas. E esse fenômeno do comedor e daquilo que é comido (arma e armada) é verdadeiro permanentemente e verdadeiro no âmbito dos cinco koshas.
Compreendam bem que esse imperialismo do ego de que falo consiste em querer devorar, absorver, tornar meu. Ah! Se chegássemos a isso!… O Universo inteiro nos pertenceria e o ego teria sido bem sucedido em imitar o atman e, como ego limitado, em ter conquistado o ilimitado. Na verdade, é impossível. O finito jamais absorverá (uma outra forma de dizer “comer”) o Infinito, o limitado jamais absorverá o Ilimitado. Porém, enquanto você não tiver visto a loucura desse ego que intenta essa vã caricatura do atman e da não-dualidade, não escapará dele. Continuará a ser conduzido por esse movimento insensato que sempre procura absorver. Continuará identificado com anna e atinada, o alimento e o comedor de alimento.
Muitas expressões da linguagem popular designam essa grande verdade: anna e atinada. Você pode dizer que devora quilômetros com seu carro ou sua motocicleta. As vezes, este desejo do ego se manifesta diretamente, no fato de comer bolos nas docerias ou queijo na cozinha, e certas pessoas chegam, por isso, muito simplesmente, a engordar e ficar obesas. Mas isso nunca tornará seu corpo físico capaz de conter o Universo inteiro! O mesmo acontece com o corpo sutil. O corpo sutil não pode, com base no ego, conter o Universo inteiro — somente com base na compreensão: compreender, que significa incluir. Mas você só pode compreender e incluir verdadeiramente aquilo a que você concede plenamente o direito de ser, senão você o anexa sem tê-lo visto, sem tê-lo reconhecido — sendo imediatamente possuído por ele, sendo imediatamente projetado nele. Então veja: o corpo físico tem necessidade de comer; o corpo sutil também, e de muitas maneiras. Ele tenta alimentar-se de tudo. Um prefere batatas fritas, outro prefere massa; do mesmo modo, certos corpos sutis preferem certo tipo de alimento, como a glória e o sucesso (alimento que convinha a Napoleão, conquistador da Europa), e outros preferirão alimentar-se, antes de mais nada, de música. Diz o provérbio: “Cada um tem seu prazer onde o encontra”. Podemos dizer também: cada um pega seu aumento onde pode.
Olhe bem como o imperialismo do ego do qual estou falando corresponde a essa noção, compreendido num sentido sutil de comer, devorar. O ego procura o tempo todo alimentar-se, como as vacas, que não param de pastar da manhã à noite. Vejam o lugar que o alimento ocupa na vida natural.
Pois bem, se você compreende que procura comer o tempo todo, absorver, deve compreender que a recíproca tem que ser verdadeira e que, o dia todo, os outros procuram comê-lo e absorvê-lo. Da manhã à noite, ao mesmo tempo que você procura alimentar-se como ego, o dia todo, como ego, você é “comido”. Um médico é “comido” por seus pacientes, um amante é “comido” pela amante, certas mães são “comidas” pelos filhos. Mas Ele, o atman, não come nada e não é comido por ninguém.
Retome segundo o seu modo de ver as palavras de Swâmiji: “Arnaud, se você compreende de que você se alimenta e para o que serve de alimento, compreendeu o que tem que ser compreendido”. Não faça disso algo tão misterioso e esotérico que acabe por não lhe dizer respeito; traga para seu nível. O que é verdadeiro num nível é verdadeiro em outro; as leis são as mesmas em todos os planos. Hoje você vive nessa consciência particular do ego. Veja em ação a grande verdade dos Upanishad, atina e aunada, o alimento e o comedor de alimento. E perceba que os dois fenômenos estão forçosamente ligados. Se você quer comer, serve de alimento para outro; é inevitável, é verdadeiro em todos os planos: físico, vital, mental, intelectual, exceto o último — o atman. Você gosta de comer o tempo todo, de se alimentar com tudo de que gosta. Concorde também que a vida se alimente de você, que os outros se alimentem de você.
Fisicamente, você servirá de alimento aos vermes mas, hoje, vitalmente (pranamayakosha), aquilo que “suga” sua energia se nutre de você; e no plano mental (manomayakosha), aquilo que provoca emoções em você se nutre de você. Se você come, é comido. Aquilo que você apanha com avidez, ao mesmo tempo se apodera de você. Um matemático que se alimenta de sua matemática serve de alimento para sua matemática, é “comido” por suas pesquisas e por seu trabalho — inevitavelmente. Você quer ser livre? Liberte. Quer ser livre? Abra as portas. Você é o guardião da prisão.
Na verdade, uma visão total do que estou hoje tentando lhe dizer libertá-lo-ia na hora. Eu vi… Acabou. Há uma porta a abrir definitivamente. Você ainda não pode abri-la porque ainda não está suficientemente unificado. Ainda é feito de peças e pedaços. Nos textos budistas, usam a expressão “a grande coleção” para designar o ser humano. Essa não-unificação o impede de pôr em prática, total e definitivamente, aquilo que você tem a impressão de compreender, porque sua totalidade não o compreende tão claramente quanto o intelecto. Se você pudesse ver quanto isso é verdadeiro, se entregaria de vez, libertaria, e seria liberto na mesma hora. Nada mais de ego. Aceitaria a lei natural, inevitável, da troca: você não pode tomar sem dar. Você é levado, essa é a lei, a se alimentar no mundo fenomênico e a servir de alimento no mundo fenomênico. Mas você descobrirá aquilo que, em você, não come nada e não é comido por ninguém — nem física, nem sutilmente — ou seja, o atman. Descobrirá que aquilo que não come nada e não é comido por ninguém é o Fundamento universal, imutável, desse mundo fenomênico que, este sim, consiste unicamente no duplo movimento de anna e annada. Tudo é alimento e tudo se alimenta, no âmbito da multiplicidade. No âmbito do único, eterno e infinito Oceano, nada come, nada é comido. E você pode descobrir isso em você. É a segurança absoluta. A morte é simplesmente um aspecto particularmente importante desse fenômeno. O corpo físico está definitivamente destruído, parou de se alimentar e vai servir de alimento. Mas, no plano sutil, os fenômenos prosseguem.
Não transforme minhas palavras num disparate impossível de pôr em prática. Fisicamente, você come. Coma! Coma de modo correto, não se empanturre, coma alimentos apropriados — sabendo que, um dia, você é que será comido. É a lei. Do ponto de vista energético (pranamayakosha), absorva energia. A energia chega até você com o ar, com a luz, com todas as vibrações — tudo é mais ou menos portador de prana, e você é mais ou menos capaz de se alimentar desse prana, dessa energia. Alimente-se artisticamente, intelectualmente. Alimente-se de música, alimente-se de obras de arte. Alimente-se. Mas aceite que serve de alimento — não se revolte. Aceite, aceite. Se você é mãe, sirva livre e conscientemente de alimento para seus filhos; se for médico, sirva de alimento para seus pacientes. Se dê conscientemente a devorar. “Não há amor maior do que dar a vida para quem se ama.” O ego grita: “Quero comer, mas não quero ser comido!”. O atman diz: “Tanto faz, eu nem como, nem sou comido!”. Quanto aos fenômenos, eles se desenrolam de acordo com sua própria lei de causas e efeitos, “a vontade de Deus”, com a qual sua vontade, um dia, pode se confundir.
E viva de maneira correta, ou seja, só pegue o que lhe é necessário e deixe cada coisa ser ela mesma; não tente apoderar-se imediatamente dela. Não falo apenas dos casos em que, claramente, você está devorando alguém com sua insistência, seus pedidos, suas reclamações. Digo — e você pode verificar — que, da manhã à noite, você não respeita mais a diferença, não respeita mais a dualidade, e não será pela anexação que alcançará a comunhão — pelo contrário. O imperialismo do ego arranca você de você mesmo, arranca você do seu próprio Centro, atrai você cada vez mais para a periferia, para os objetos dos quais você quer se apoderar.
Dê liberdade àquilo que cerca você e, assim, voltará a estar centrado em você mesmo. Meu amor pela flor arrancou-me de mim mesmo e me confundiu com a flor, minha repugnância pela cobra arrancou-me de mim mesmo e me confundiu com a cobra. Se dou liberdade, dou liberdade a mim mesmo. Dê liberdade àquilo de que você não gosta; dê liberdade àquilo de que você gosta. Não decida: essa flor é bela. Você já terá se apoderado dela. Não. Ela “é”; ela É. O cardo é tão belo quanto o gladíolo, o dente-de-leão é tão bonito quanto o crisântemo…
Uma frase de Mestre Eckhart diz: “Você pode gozar de todas as bênçãos da vida se, no mesmo instante, estiver pronto para abandoná-las de imediato, também alegremente”. É outro modo de dizer a mesma coisa. Você pode gozar de todas as boas coisas da vida se, no mesmo instante, estiver disposto a acolher, também alegremente, um acontecimento desagradável. Nesse momento você é livre. Pode ouvir essas palavras em dois níveis. Pode ouvi-las — mas é bem difícil de compreender antes de tê-las realizado em si — para designar o jivan mukta que é capaz de ser um com tudo, tudo apreciar: o “bom” e o “mau”. E pode ouvi-las referindo o discípulo comprometido com o Caminho — o discípulo que progride, que vai continuar a viver no ego, mas de maneira muito mais afinada; o ego ainda está aí, mas muito menos opressivo, muito menos crispado, muito mais livre. Considere essas palavras concernentes a você, a partir de hoje, como discípulo. Por que eu vivo no medo, na culpa e me frustro? Acolha, acolha aquilo que você pode receber e aquilo que lhe é dado. Mas acolha também aquilo de que você não gosta e que lhe é dado. Acolha os acontecimentos felizes; acolha também os acontecimentos infelizes, sem se revoltar. E quando receber uma coisa feliz, pegue-a sem imperialismo, sem cobiça, sem apego (moha em sânscrito), sem fazer dela uma questão pessoal. Eu a recebo na liberdade; no instante, está aí. Não se pode mais dizer “pegar” mas “comungar”. No instante, está aí. Pode ser que em um segundo não esteja mais. Está aí. Se vier qualquer outra coisa, eu também a acolho.
Por meio dessa liberdade interior você sentirá o que é correto, qual ação deve ser realizada. Não é mais a expressão do ego com sua cegueira, seus medos, seus desejos, sua inquietação. É a resposta neutra e objetiva às circunstâncias, dada sem deixar o Centro que não come e não é comido por ninguém.