A Bíblia, Documento Cifrado (Abellio1950)
“É Lilith quem consumará a ruína do mundo. Quando o Santo, bendito seja, estiver prestes a destruir para sempre a culpada cidade de Roma, libertará Lilith e a lançará sobre o mundo em ebulição, conforme está escrito: ‘Ali Lilith repousa e encontra seu lugar de descanso.’ (Isaías 34:14).” — Zohar III-19a
I. CONSIDERAÇÕES GERAIS: A LIGAÇÃO AIN-SOF-MALCHUT
Toda a Cabala judaica está centrada nos dez degraus da efusão divina chamados Sefirot. Antes mesmo de abordar o primeiro livro de Moisés, que apresenta uma Cosmogonia, a ciência numérica deve tentar penetrar no mecanismo sefirótico, que é o da Teogonia. Desde o início, encontrará ali suas melhores justificativas.
Não tenho a intenção de apresentar aqui uma história exegética do problema das sefirot, um dos mais árduos e confusos que existem. A abundância e diversidade de explicações e alegorias sobre este tema no Zohar só são igualadas pela multiplicidade desordenada de comentários. Classificar e resumir estes exigiria volumes e não traria muita clareza à questão. Todos os cabalistas tropeçaram nisso. É verdadeiramente o nó da Cabala, o centro da Tradição. Convencido de que a primeira explicação possível das sefirot é essencialmente numérica, limitar-ME-ei a uma apresentação filosófica sucinta, remetendo aos trabalhos especializados para uma compreensão mais completa.
O que são as sefirot? Degraus situados entre o mundo do Inconhecível ou Ain-Sof e o da Manifestação visível, intermediários ao mesmo tempo emanados e emanantes. Brücker (Hist. crit. phil., tomo II, Leipzig, 1742, citado por Vulliaud, La Kabbale Juive, p. 312) oferece doze explicações das sefirot: religiosa, filosófica, demonológica, astronômica, astrológica, física, lógica, matemática, metodológica, alquímica, política, messiânica. “Há séculos”, diz Vulliaud (op. cit., p. 324), “discute-se se as sefirot devem ser consideradas como princípios, substâncias, potências, modos intelectuais, entidades ou órgãos da divindade. E se são tudo isso”, pergunta ele, “e ainda mais?” Nós as veremos, por nossa vez, como um modelo aritmético geral, um esquema universal situando os modos operacionais pelos quais se realizam, em ciclos ao mesmo tempo teocosmo e antropogenéticos, os nascimentos, transmutações, casamentos, filiações, retornos dos Números. Portanto, antes mesmo de abordar o Gênesis de Moisés, é preciso tentar desmontar o mecanismo sefirótico. Um sinal, aliás, não engana: já pressentimos que, no Gênesis, os modos operacionais da multiplicidade manifesta são caracterizados pelo jogo do Mem final, que marca essencialmente a intervenção e depois a redução de uma heterogeneidade. Há dois Mem finais no primeiro versículo do Gênesis. Há três no segundo. Ora, não se encontra um único em toda a construção sefirótica. Mas é esta que fornece a chave do mecanismo pelo qual, sabemos, o Mem final procede à encarnação do 1 e assim concentra ideograficamente o modo operacional essencial cuja elaboração as sefirot nos ensinam.
As sefirot são a expressão das relações de Deus consigo mesmo, de sua processão em si e para si. Enquanto a Bíblia descreve e detalha desde o início as relações de Deus e sua criação e fixa consequentemente as vias e meios da transcendência de Deus, as sefirot só exprimem as leis de sua imanência. Mas estas são leis supremas: são essa “transcendência na imanência” de que fala Husserl. A explicação da Bíblia consistirá em mostrar como a transcendência se desprende da imanência, e como a primeira aparece no seio da segunda, aí se desenvolve e se reabsorve. O mundo é o conteúdo, as sefirot são o continente, mas não cessam de estar ligados por uma relação reversível de reflexo-refletido.
“A definição das sefirot varia conforme a ordem em que são consideradas. Na ordem do conhecimento, são dez luzes que iluminam a inteligência. Na ordem dos nomes, são dez atributos do Santo, bendito seja. Na ordem da Revelação, são os dez aspectos sob os quais a essência divina se dá a conhecer, os dez ‘vestidos’ com que se reveste, os dez degraus proféticos pelos quais desenvolve suas comunicações reveladoras. Na ordem cosmogônica, são as dez ‘palavras’ pelas quais Deus criou o mundo, os dez sopros pelos quais o move e vivifica, os dez números pelos quais tudo é enumerado, medido, pesado. Na ordem beatífica, são as dez espécies de glória de que gozam as almas e os espíritos puros. Enfim, como o Universal é uma harmonia, era fácil estabelecer a série de correspondências alquímicas, astrológicas, etc. (Vulliaud, op. cit., p. 324-325).”
Provisoniamente, só consideramos as sefirot na ordem quantitativa ou operacional. Ver-se-á que, sem este suporte, qualquer outra interpretação corre o risco de cair no arbitrário. O problema é fundar uma dinâmica das sefirot desvendando primeiro seus caracteres particulares e depois estabelecendo entre elas ligações aritméticas gerais e modos de geração reversíveis ou cíclicos obedecendo aos axiomas do esoterismo e os esclarecendo. Não se compreenderá o mecanismo sefirótico se o considerarmos como uma sucessão de engrenagens postas em ação, na origem da cadeia, por uma única roda motriz, a última roda engrenando sozinha no mundo da manifestação. Na realidade, todas as rodas são motrizes, e todas são movidas. O mundo sefirótico é um mundo fechado e completo. Se nele se estabelecem divisões, estas têm um valor absolutamente geral e são modelos universais, mas não tiram nada do Todo: são caracteres ou propriedades do Todo. Ou ainda, para usar a linguagem da filosofia moderna, não é porque as sefirot constituem um conjunto ou um englobamento que encerram o absoluto. Cada sefirá, parte desse conjunto, não é uma parte do absoluto. O absoluto deve ser considerado como intensidade e densidade, e pode ser encontrado e sentido em qualquer coisa muito pequena1. Consequentemente, no seio do aparelho ou do mecanismo sefirótico e de sua fixidez, que resulta de um movimento perpétuo fechado sobre si mesmo, nada sucede, tudo coexiste, nada se divide, e tudo está dividido. As sefirot são um modelo que permite, por uma operação ideográfica, tomar consciência da gravitação no seio do intemporal.
O quadro das sefirot apresenta-se como uma sobreposição de três triângulos constituídos pelas nove primeiras sefirot, a última sendo disposta à parte, abaixo do conjunto. O conjunto forma assim quatro andares; que são, de cima para baixo:
1) o mundo da emanação = Atziluth.
2) o mundo da criação = Briah.
3) o mundo da formação = Yetzirah.
4) o mundo da ação = Asiah.
Acima do conjunto, e distinto dele, está o Inconhecível (Ain-Sof).
Distinguem-se também as três primeiras sefirot, chamadas sefirot intelectuais, e as outras sete chamadas sefirot inferiores. Esta divisão destina-se a marcar o caráter eminente do mundo da Emanação.
O suporte figurativo do conjunto sefirótico é o mais simples de todos os suportes possíveis: uma triangulação. Enquanto os outros ideogramas, sejam as letras hebraicas, os diversos pantáculos ou as figuras do tarô de Hermes, são desenhos mais ou menos complicados, a Árvore das Sefirot apresenta-se como a abstração mais avançada e mais vazia. Este arcano dos arcanos não dá nenhuma pega à visão lírica imediata. Só pode ser esclarecido e iluminado por um conhecimento metafísico prévio.
No quadro a seguir, numeramos as sefirot na sua ordem tradicional de 1 a 10. Indicamos também seus valores numéricos tais como resultam do nosso alfabeto:
Séphiroth | Título | Valor |
Ain-Soph | (Inconhecível) | = 166 |
(I) Kéther | (Coroa) | = 500 |
(2) Hochmah | (Sabedoria) | = 70 |
(3) Binah | (Inteligência) | = 66 |
(4) Hésed | (Clemência) | = 58 |
(5) Guébourah | (Rigor) | = 146 |
(6) Tiphéreth | (Esposo) | = 903 |
(7) Netzah | (Vitória) | = 120 |
(8) Hod | (Esplendor) | = 23 |
(9) Yésod | (Base) | = 73 |
(10) Malcouth | (Esposa ou Reino) | = 443 |
As três primeiras sefirot, as do mundo da Emanação, representam os três sóis pelos quais Deus se infunde e se efunde sem deixar de ser Ele mesmo, em sua triunidade estática e não manifestada, e pela gravitação interior dos quais Ele é ao mesmo tempo, para Si mesmo e em Si mesmo, o Conhecedor, o Conhecido e a ideia do Conhecimento, ou ainda, se toda consciência de si pressupõe em alguma medida separação e consequentemente sacrifício, os três instrumentos desta processão que reúne em Deus, antes de serem utilizados como matrizes de Sua manifestação dinâmica, o Sacrificador, o Sacrificado e a própria ideia do Sacrifício: o Pai, o Filho e o Espírito Santo, o Iniciador, o Iniciado e a Iniciação. Mas esta divisão em três encontra-se igualmente nos mundos inferiores da própria divindade, também em número de três, e as sete sefirot inferiores não são em suas três ordens senão uma expressão das três primeiras, acrescentando apenas a estas um complemento de estrutura. A relação entre as três sefirot supremas e as sete sefirot inferiores lembra aquela que liga as três letras-mães e as sete letras-duplas do Sépher Yetzirah. Esta relação entre o número 3 e o número 7 coloca um dos problemas-chaves da ciência numérica.
Enquanto o simbolismo do ternário está encerrado no Yin-Yang chinês (a dualidade do branco e do negro contida por seu equilíbrio permanente no seio do círculo), o simbolismo do setenário está contido no mais importante dos ideogramas conhecidos, o Selo de Salomão, onde os seis ramos visíveis em perpétuo estado de equilíbrio dinâmico e reversível são completados pelo centro do círculo, símbolo das ligações intemporais, que comanda ao mesmo tempo as três direções duplas e restitui o total 6 + 1 = 7. Estes dois ideogramas dão conta dos dois axiomas do esoterismo:
1) o que está em cima é como o que está embaixo, — ou ainda: as três sefirot de cima são desenvolvidas e equilibradas pelas sete sefirot de baixo.
2) o microcosmo é como o macrocosmo, — ou ainda: cada parte contém o todo, as três sefirot de cima contêm as sete de baixo, e mais geralmente cada sefirá as contém todas.
A primeira relação que se pode estabelecer entre os mundos superiores e os mundos inferiores e nomeadamente o Ain-Soph e Malcouth ilustra aliás a relação dos números 6 e 7 no seio do complexo 6 <> 7 que já encontramos.
J. Wahl, Existence humaine et transcendance (La Baconnière, Neuchâtel, 1944), p. 11. ↩