Attar (CP:43-46) – Discurso da poupa aos pássaros

Assim que a poupa terminou o seu discurso, os pássaros puseram-se agitados, sonhando com a majestade e a glória daquele rei, e, tomados pela ânsia de tê-lo como seu próprio soberano, ficaram impacientes para partir. Fizeram, assim, seu projeto de viagem e resolveram ir juntos; cada qual tornou-se um amigo do outro e um inimigo de si mesmo.

Machado & Rizek

Todos os pássaros do mundo, tanto os conhecidos como os desconhecidos, reuniram-se e tiveram entre si estas palavras: “Não há no mundo país sem rei; como pode ser então que os pássaros não tenham um para governá-los? Este estado de coisas não pode perdurar! Devemos unir nossos esforços e ir em busca de um rei, pois num país sem rei não há boa administração e o exército está desorganizado”.

Assim, os pássaros começaram a considerar como partir em busca de um rei. A poupa, emocionada e cheia de esperança, foi à frente, colocando-se no centro da assembleia. Levava no peito o emblema que atestava que ela havia entrado no caminho espiritual e que conhecia o bem e o mal: a crista em sua cabeça era a coroa da verdade.

“Prezados pássaros”, começou, “sou um dentre aqueles engajados na milícia divina, sou a mensageira do mundo invisível. Conheço Deus e os segredos da Criação. Quando, como eu, se tem inscrito no bico o nome de Deus, necessariamente deve-se ter conhecimento de muitos segredos. No entanto, passo meus dias na ansiedade e não ME interesso por ninguém, pois estou absorvida no amor ao rei. Ocupo-ME somente do que interessa pessoalmente a ele, e não ME inquieto pelo seu exército. Posso encontrar água por instinto natural, e conheço ainda muitos outros segredos. Encontrei-ME com Salomão e sou o primeiro dentre seus seguidores. É admirável que ele nunca perguntasse pelos ausentes; no entanto, quando eu ME afastava dele, mesmo que por um só dia, mandava buscar-ME por toda parte; e já que não podia ficar sem mim um momento sequer, fica assim estabelecido meu valor para sempre. Eu levava suas cartas e era sua confidente: o pássaro que é querido pelo profeta Salomão merece ter uma coroa em sua cabeça.

“Pode qualquer pássaro entrar no Caminho senão pela graça de Deus? Durante muitos anos viajei por mar e por terra; atravessei vales e montanhas; percorri um imenso espaço nos tempos do dilúvio, sem terra para descansar; acompanhei Salomão em suas viagens e medi várias vezes a superfície do globo.

“Conheço bem meu rei, mas não posso ir a seu encontro sozinha. Se quiserdes acompanhar-ME, vos darei acesso à corte desse rei. Libertai-vos da timidez, de toda presunção e de qualquer turbação incrédula. Aquele que deixou a própria vida está liberto de si mesmo, foi libertado do bem e do mal para trilhar o caminho de seu bem-amado. Sede generosos com vossas vidas e colocai o pé no caminho para chegar à porta desse rei. Temos um verdadeiro rei. Ele habita além do monte Kaf e seu nome é Simorg; é ele o rei dos pássaros. Ele está sempre próximo de nós, apesar de estarmos distantes dele. O lugar onde vive é inacessível e não pode ser descrito por nenhuma língua. Diante dele pendem cem mil véus de luz e escuridão. Nos dois mundos não há ninguém com poder para disputar seu império. Ele é o soberano por excelência, está imerso na perfeição de sua majestade; e não se manifesta completamente sequer no lugar de sua morada, a qual nem a ciência nem a inteligência podem alcançar. O caminho é desconhecido, e, ainda que milhares de criaturas gastem suas vidas desejando-o, muito poucos têm bastante perseverança para encontrá-lo. A alma mais pura não saberia descrevê-lo, nem a razão compreendê-lo. Estamos confusos e, apesar de termos dois olhos, na escuridão. Nenhuma ciência descobriu ainda sua perfeição, nenhuma vista percebeu ainda a beleza de sua face; as criaturas não puderam elevar-se até sua excelência; a ciência ficou aquém, e ao olho faltou alcance. Foi em vão que as criaturas desejassem alcançar com sua imaginação esta perfeição e esta beleza. Como abrir este caminho pelo pensamento? Queres medir a lua como medes um peixe? Milhares de cabeças são aqui como bolas de polo jogadas de um lado para outro num grande torneio, e só se ouvem exclamações e suspiros dirigidos aos céus. Encontrareis neste caminho água e terra firme, e ninguém pode ter ideia de sua extensão. É necessário um homem com coração de leão para percorrer esta rota extraordinária, pois o caminho é longo e o mar profundo. Podeis caminhar, também, penosamente: ora rindo ora chorando, em estupefação. Quanto a mim, seria feliz em encontrar ao menos uma pista deste caminho, pois seria uma vergonha viver sem alcançá-lo. Para que serviría a alma se não houvesse um objeto para amar? Se és um homem, que teu coração não fique sem dono. É preciso um homem perfeito para este caminho, pois deve saber introduzir sua alma nesta corte. Valentemente lava as mãos desta vida se queres ser chamado homem de ação. Para que serviría a vida sem amor? Pela amada, renuncia a tua vida querida como os homens dignos de sua vocação. Se entregas generosamente tua alma, merecerás que tua bem-amada sacrifique a vida por ti!’

A PRIMEIRA MANIFESTAÇÃO DO SIMORG

Coisa admirável! A primeira manifestação do Simorg teve lugar na China, em meio à noite sem lua. Uma de suas plumas caiu na China e sua fama correu o mundo todo. Cada um que dela ouviu falar imaginou um desenho e tomou-o como verdadeiro em seu coração. Esta pluma ainda se encontra na sala de pinturas daquele país, e é por isso que o Profeta disse: “Busca o conhecimento, ainda que seja na China”. Não fosse essa pluma, não teria havido tanto barulho no mundo a propósito desse misterioso ser. Este sinal de sua existência é a lembrança de sua glória. Todas as almas levam uma impressão da imagem dessa pluma. Como sua descrição não tem pé nem cabeça, nem começo nem fim, não é necessário dizer mais nada a esse respeito. Agora, vós que sois homens do Caminho, tomai essa direção e colocai o pé nessa via.

Assim que a poupa terminou o seu discurso, os pássaros puseram-se agitados, sonhando com a majestade e a glória daquele rei, e, tomados pela ânsia de tê-lo como seu próprio soberano, ficaram impacientes para partir. Fizeram, assim, seu projeto de viagem e resolveram ir juntos; cada qual tornou-se um amigo do outro e um inimigo de si mesmo. Porém, quando começaram a perceber quão longa e dolorosa seria essa viagem, hesitaram. E, apesar da boa vontade que parecia haver, cada um, justificando-se à sua maneira, deu uma desculpa diferente para não se comprometer.

Garcin de Tassy

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