“O que acontece no momento do sono profundo? A pessoa deixa na cama suas roupas, seu cachorro, seu corpo, seu carro, seu marido, seus filhos, sua família, seu futuro, seu passado, tudo o que diz ser, tudo o que tem, tudo o que é tão importante para nós, tudo o que está preparado para defender à custa de sua vida, honra, patrimônio… nesse momento, não precisa mais de nada. O que você quer? Não se quer nada. Isso é o que se deseja de todo o coração, todas as noites. A pessoa é claro, não tem o dinamismo de querer levar nada consigo. Geralmente, na vida cotidiana — as razões não são importantes, porque não existem — a pessoa alega precisar disso ou daquilo. Quando se atribui uma causa à alegria, a alegria desaparece assim que essa causa deixa de existir. No entanto, todas as noites, todos nós temos a prova de que a coisa mais importante para nós é …. nada. Quanto mais íntima for essa passagem para o sono profundo, mais íntima será a saída do sono, e mais o dia manterá uma atmosfera derivada da intuição de que nada é importante. […]
Não se adormece, não se afunda no cansaço: deixa-se o corpo adormecer em si mesmo, no coração. Peso, densidade, volume, todas as sensações morrem em você, você não adormece: tudo adormece em você… De manhã, a partir dessa intimidade, tudo desperta em você. Enfrentar o sono é a arte básica da vida. Se você encarar o sono com intimidade, fará o mesmo com a morte. Ela não é a morte do corpo, mas a morte de cada momento, situação, pensamento ou percepção. […] É indispensável adormecer na percepção” (p. 215).
Aqui. A meditação é um estado de lucidez: portanto, o centro perfeito em oposição aos extremos de torpor e esforço. Mas quão próxima está a prática meditativa — que é uma prática de rendição, de colapso, de esvaziamento — da dimensão do sono! Não é coincidência que muitas vezes, especialmente na tradição indiana, tenham sido feitas justaposições entre o momento do sono e o momento da realização. Maharaja Nisargadatta diz, em um de seus diálogos, que a pessoa realizada é aquela que passa pela vida com a mesma facilidade com que, à noite, quem dorme ajeita o travesseiro.
A prática é um abandono progressivo, é um abandono de todas as nossas estruturas e, nesse abandono, o descanso. Essa queda corajosa — corajosa porque é um ir em direção ao nosso enigma — é a entrada em nossa intimidade. O que nos separa dessa intimidade? Tudo em nós é a armadura. E se a armadura tem o propósito de construir nosso eu psicológico e social, por outro lado ela nos separa de nossa intimidade, de nossa morada, de nosso centro, dessa adesão ao silêncio de nossas profundezas. Habitar nesse silêncio é também superar a abordagem romântica e psicológica de ter um relacionamento consigo mesmo. Não há mais um relacionamento consigo mesmo; o relacionamento consigo mesmo ainda é dualista; em vez disso, há uma revelação do vazio sempre presente daquele “eu” que estávamos procurando: há um esvaziamento da pergunta a partir de dentro, não a enésima resposta filosófica, mística e espiritual.
E nesse esvaziamento da pergunta, nessa superação do dualismo, nesse silêncio, nesse habitar de nossas profundezas, tudo se torna fantasticamente novo, tudo revela sua inelutabilidade, tudo é verdade, tudo é o que é, e nesse ser o que é, cada coisa, cada evento encontra seu lugar. Não há mais nada a ser superado, nada a ser evitado, nenhuma situação a ser evitada, tudo é importante: cada evento, cada entidade. É o espaço total e vertiginoso da liberdade. Para o qual nunca estamos totalmente prontos.