O Bhagavad-Gîtâ, que é, como sabemos, um episódio destacado do Mahâbhârata, foi traduzido tantas vezes para as línguas ocidentais que deveria ser bem conhecido por todos; mas esse não é o caso, porque, para dizer a verdade, nenhuma dessas traduções mostra qualquer compreensão real. O título em si costuma ser traduzido de forma um tanto imprecisa como “Canção dos Bem-aventurados”, porque, na realidade, o principal significado de Bhagavat é “glorioso” e “venerável”; o significado de “feliz” também existe, mas de forma muito secundária e, além disso, é bastante inadequado no caso em questão. De fato, Bhagavat é um epíteto que se aplica a todos os aspectos divinos e também a seres que são considerados particularmente dignos de veneração; a ideia de felicidade, que é basicamente de natureza individual e humana, não está necessariamente contida nele. Não é surpreendente que esse epíteto seja dado a Khrishna em particular, que não é apenas um personagem venerável, mas que, como o oitavo avatara de Vishnu, realmente corresponde a um aspecto divino; mas há algo mais aqui.
Para entender isso, devemos nos lembrar de que os dois pontos de vista, vishnuísta e shivaísta, que correspondem a dois grandes caminhos adequados a seres de diferentes naturezas, tomam, cada um, como suporte para ascender em direção ao Princípio Supremo, um dos dois aspectos divinos, complementares de certa forma, aos quais devem suas respectivas designações, e transpõem esse aspecto de tal forma que o identificam com o próprio Princípio, concebido sem qualquer restrição e além de qualquer determinação ou especificação. É por isso que os Shaivas designam o Princípio Supremo como Mahâdêva ou Mahêshwara, que é propriamente um equivalente de Shiva, enquanto os Vaishnavas também o designam por um dos nomes de Vishnu, como Nârâyana ou Bhagavat, sendo este último usado sobretudo por um certo ramo que, por essa razão, leva o nome de Bhâgavatas. Além disso, não há em tudo isso nenhum elemento de contradição: os nomes são múltiplos como os caminhos aos quais se referem, mas esses caminhos, mais ou menos diretamente, levam todos ao mesmo objetivo; a doutrina hindu não conhece nada como o exclusivismo ocidental, para o qual um único e mesmo caminho deve servir a todos os seres igualmente, sem levar em conta as diferenças de natureza que existem entre eles.
Agora, será fácil entender que Bhagavat, sendo identificado com o Princípio Supremo, não é outro senão o Âtmâ incondicionado; e isso é verdade em todos os casos, quer esse Âtmâ seja considerado na ordem “macrocósmica” ou na ordem “microcósmica”, dependendo se desejamos aplicá-lo a diferentes pontos de vista; obviamente, não podemos pensar em reproduzir todos os desenvolvimentos que já demos em outros lugares sobre esse assunto. A esse respeito, Krishna e Arjuna representam respectivamente o “Si” e o “eu”, a personalidade e a individualidade, que são Âtmâ e jîvâtmâ incondicionados. O ensinamento dado por Krishna a Arjuna é, desse ponto de vista interno, a intuição intelectual suprarracional pela qual o “Si” se comunica com o “eu”, quando este último está “qualificado” e preparado de tal forma que essa comunicação pode de fato ocorrer.