Bharata – Tradução do Natya Shastra

René Daumal — A ORIGEM DO TEATRO DE BHARATA

A tradução.

Não se traduziu até aqui em línguas europeias senão alguns dos capítulos mais técnicos, e os menos utilizáveis para os Ocidentais, do Natya Shastra (salvo alguns fragmentos deste primeiro capítulo traduzido por Sylvain Lévy no Teatro indiano com a única finalidade de ilustrar a «piedosa credulidade dos indianos» (mas, diz ele, «a crítica europeia não poderia disto se contentar»). Li e tentei traduzir este texto com todo um outro espírito, pensando, à maneira dos orientais, que um texto é feito para servir o homem e não para o escravizá-lo. Tentei portanto dele tirar o máximo de sentido, não hesitando em render seu pleno valor etimológico a certas expressões cujo sentido certamente se enfraqueceu para o leitor hindu hoje em dia. O problema da tradução dos nomes mitológicos é quase insolúvel, sua solução dependendo dos conhecimentos e das associações de imagens de cada leitor; assinalei nas notas cada caso particular, dando sempre a palavra sânscrita. É lamentável que não possuamos o comentário de Abhinavagupta para os primeiros capítulos do Tratado.

TRATADO SOBRE O TEATRO

Tradução do Natya-Shastra

1. Cabeça curvada diante do Grande-Pai1 celeste e celeste Príncipe, vou expor o Ensinamento do Teatro, que foi pronunciado por Brahma.

2. Chegado ao fim de sua oração2 e fixado seu voto, Bharata, especialista em ciência dramática, um dia de suspensão de estudos estava cercado de seus filhos.

3. O eremitas3 vieram se assentar ao redor dele, Filho do Devorador na cabeça, e estes grandes-em-essência, desafiadores de seus sentidos e de seus pensamentos, o interrogaram:

4. «Esta obra perfeitamente ajustada pelo Bem-aventurado4 sobre as medidas do Saber sagrado, este Saber do Teatro, o sacerdote, como surgiu, ou quem dela foi a causa? »

5. «Quantos membros tem? Quais são suas medidas5 ? Sob que forma é empregada? Ouse, Bem-aventurado, nos dizer todas estas coisas tais quais são. »

6. A estas palavras dos eremitas, o eremita Bharata respondeu por este discurso, que é a história do Saber do Teatro: (relato de Bharata)

7. Que vossas Presenças6 se esclareçam então, e reúnam aqui seus pensamentos, para entender o nascimento do Saber do Teatro, produto da Palavra Divina.

8. Outrora, quando encerrou a Idade-de-Perfeição7 e o o reino do Filho-do-Pai-nascido-de-si-mesmo, veio por sua vez a Idade-do-número-três e o reino do Pensador Filho-do-Sol-radiante.

9. Depois veio, por sua vez, a lei profana dos sexos Caindo sob a escravidão do desejo e da cupidez, perdido pela avidez, a cólera e todas as loucuras, o mundo foi submetido ao prazer e à pena.

10. Deuses, Titãs, Músicos celestes, Espectros, Gigantes, Dragões vagavam então como senhores o Continente do jambu, residência dos Guardiões-do-Mundo.

11. Pela boca de Indra seu príncipe, os Deus disseram ao Grande-Pai: «Queremos algo que nos delicie, algo para ver e ouvir! »

12. «O comércio do Saber sagrado, não se pode fazer entender às gerações servis. Extraia portanto um novo e quinto Saber para as pessoas de todas as castas. »

13. «seja», lhes disse e, remetendo o Rei-dos-deuses, repensou os Quatro Saberes, se fixando na sua própria unidade, — ele que vê as coisas tais quais são.

14. «As leis da justiça, da riqueza e da glória, com explicação prática e quando de conjunto; a representação, para o mundo a vir, de todas as formas de atividade.

15. «a substância de todas as ciências, operação de todos os métiers; de tudo isso, aí juntando-se os Mitos, faço o Quinto Saber que se chamará Teatro. »

16. Assim o Bem-aventurado repensou todos os Saberes; e o Grande-Pai logo fez o Saber do Teatro, produzido dos quatro membros do Saber.

17. Retirou a recitação do Saber-das-Estâncias, e do livro das Melodias o canto; do Saber-dos-Ritos as mímicas, e os Sabores do livro do Guarda-fogo.

18. Assim coordenado pelo Grande-em-essência aos Saberes e às ciências secundárias, o Saber do Teatro foi emitido pelo Bem-aventurado, por Brahma o omnisciente.


  1. Grande-Pai = Brahma. Príncipe = Shiva. O mestre da Palavra e o mestre da Dança são os pais da arte dramática. Se tiveres que traduzir «Brahma», diga «o Proferidor».  

  2. A oração, é a recitação interior do Veda, acompanhada de uma ginástica mental muito sábia, em particular de certas operações de dissociação do texto que ajudam a tomar consciência do sentido não dito. O voto é, para o homem, a escolha que faz de cumprir sua função própria, de viver segundo sua disciplina particular. Bharata nos é apresentado ao final de uma experiência humana, cujo Teatro será o fruto. A suspensão de estudos, ou interdição de ler o Veda, era imposta certos dias e em certas circunstâncias meteorológicas (v. Leis de Manu, IV, 101 a 128).  

  3. O termo muni (aqui eremita) indica um «silencioso» e um «solitário». Os munnis agrupavam seus silêncios e solidões ao redor de um mestre. O Teatro foi sem dúvida para os eremitas de Bharata o que a Música foi para os pitagóricos. A história que vai seguir é considerada se passar entre os «deuses»; mas ela pode se transpor exatamente no quadro de uma escola de ascetas, da Brahma seria o chefe (Brahma, então, designa também a pessoa cuja presença é necessária a toda operação sagrada). O Devorador (atri) é talvez, como «bharata», um nome védico do fogo. Atri é filho de Brahma, e engendra a Luz por um de seus olhares. Os descendentes de Atri formam uma família espiritual que talvez tenha sido ligada desde cedo ao culto de Shiva, pois este recebe por vezes o sobrenome de «Filho de Atri». Grande-em-essência traduz mahatman, «magnânimo» daria exatamente se tivesse seu pleno valor etimológico.  

  4. Bem-aventurado, epíteto de Brahma, é para o bhagavant, que implica plenitude de felicidade e autoridade dispensadora. Emprego Saber, Saber sagrado, para a palavra veda. Sacerdote traduz, muito mal, a palavra brahmâ, aqui aplicado a bharata ele mesmo.  

  5. Suas medidas devem se entender, não somente dimensões da obra, mas também regras canônicas que ligam uma arte particular à tradição original, e, em última análise, à pessoa humana; esta, enquanto juiz da obra de arte, é chamada «mensurador» (pramatri). Vê-se aqui o termo Bem-aventurado, como precedentemente aquele de brahmâ, passar de um instância a outra do Princípio metafísico ao instrutor humano, o que sublinha a analogia entre o céu e a escola de eremitas.  

  6. A expressão vossas Presenças ou «os existentes» equivale geralmente a uma terceira pessoa de polidez, e para se esclarecerem traduzir-se-á comumente «se estando purificados». A noção de «pureza» ME parece bem vaga aqui, enquanto o sentido de «clareza», aplicado a uma «presença» pessoal, está implicado pela situação. Em todo caso, é o único sentido utilizável para vós e eu, e espero que tenhais seguido a injunção de Bharata antes de prosseguir vossa leitura. A Palavra divina traduz Brahma (no neutro: a palavra sagrada, o Veda, o Princípio absoluto), mas pode-se ler também «produzido por Brahma» (no masculino).  

  7. Os nomes das quatro idades (yugas) que constituem um ciclo completo da humanidade são tirados de um jogo de dados (de quatro faces marcadas ou de quatro dados com marcas únicas): 1 krita, «feito, perfeito»é o nome do «quatro» nos dados e aquele da primeira idade, também chamada «idade da verdade»; 2 treta é o «três» nos dados e segundo yuga; os hindus associam por vezes a palavra à raiz trai, «salvar, conservar»; 3 dwapara é o «dois» nos dados e o terceiro yuga; 4 kali, nome do yuga atual, significa «negro» ou «ponto negro»; é o “as” ponto mais fraco nos dados (é o «quatro» que leva o jogo, por sua virtude que outros diriam pitagórica). As durações relativas destas quatro idades são como: 4, 3, 2, 1. Segundo as Leis de Manu (I,64ss), mil ciclos de quatro yugas formam um «dia de Brahma», no curso do qual catorze “Pensadores” (Manu = “pensador”, ou homem) se sucedem como administradores da criação. Bharata se afasta um pouco da concepção habitual fazendo corresponder a origem do reino do Manu atual com a origem do Treta-yuga. Mas basta que simbolismo seja coerente.  

Bharata