Bugault (GBIP) – Filosofia Indiana

A questão prévia: em que medida e que sentido pode-se falar de «filosofia indiana»?

Esta questão demanda ser abordada com inteira serenidade. Com efeito, o conhecimento das grandes culturas da Asia — com ou sem filosofia — tem muito a interessar os filósofos. Se tratando da Índia, sua antropologia, suas concepções psicológicas e medicais, a exegese de seus mitos e de seus ritos, a «ideologia tripartita dos indo-europeus» tal qual nos restituíram os trabalhos de Georges Dumézil e Stig Wikander, todos estes dados constituem capítulos importantes e relativamente novos das ciências humanas. Os filósofos poderiam aí encontrar uma mina de materiais próprios a romper associações costumeiras e a renovar algumas de suas grades epistemológicas, hermenêuticas e soteriológicas: se não houvesse o obstáculo linguístico. Pois é a língua (principalmente os originais em sânscrito, pali, traduções tibetanas e chinesas) que permanecem aqui o principal “informador”.

Posto que a cultura indiana é bastante rica, em qualquer hipótese, quer dizer com ou sem filosofia, para dar a pensar aos filósofos, propomos pôr entre parênteses os preconceitos axiológicos que viciam frequentemente este gênero de debate e vir à única questão de fato, não polêmica, que é a nossa: há filosofia na Índia? Se sim, em que medida, e em que sentido?

1. PROTOCOLO DA CONFRONTAÇÃO

Ensaiemos enunciar algumas regras capazes de servir de «moderador» da discussão, antes de enfrentar a confrontação entre a ideia que podemos ter da filosofia e o que na Índia classifica-se, certo ou não, sob o mesmo nome. Há, nos parece, três condições prévias à investigação.

1.1. INVESTIGAÇÃO DE UMA DEFINIÇÃO DA FILOSOFIA

A princípio, idealmente, seria desejável estar de acordo sobre uma definição da filosofia, na falta da qual o debate arrisca capengar de cara pelos mal-entendidos. Infelizmente a experiência mostra que há quase tantas definições da filosofia quanto filósofos. A dificuldade é grande em separar a forma da matéria, o continente do conteúdo. Mesmo a admirável definição de Jules Lagneau1 é no fundo solidária de uma certa filosofia individualista — senão idealista — da consciência. Um marxista não poderia aceitá-la. Mesmo a impossibilidade de uma definição comum entre escolas fenomenológicas e escolas positivistas ou analíticas, etc.

Não podendo dispor de uma definição formal, devemos nos contentar com um procedimento empírico. Abramos uma História da filosofia reconhecida pela comunidade internacional. O conteúdo dela é extraordinariamente disparate. Assim, ao lado de Kant que permanece sem dúvida para os universitários o protótipo do filósofo, encontrar-se-á não somente Platão mas os neoplatônicos, Santo Agostinho; não somente Aristóteles mas São Tomás, Lutero e Calvino, vide Thomas Müntzer. Em nossos dias enfim, não longe da história das ciências, entrona-se a célebre trindade Nietzsche, Marx, Freud.

1.2. UM ÚNICO PESO, UMA ÚNICA MEDIDA

Mas nos precavamos das consequências! Se pensamos que a escolástica medieval latina faz, até certo ponto, parte da história da filosofia ocidental (e como não pensar posto que Descartes dela “saiu”?), se a Suma Teológica aí tem seu lugar, então porque razão excluir Sankara da história da filosofia universal sob o pretexto que depende da tradição védica? De fato, o autor destas notas, como se verá nas Conclusões, emite reservas sobre a liberdade de pensamento da qual dispõe Sankara. Mas é preciso, nestes caso, emitir reservas paralelas do lado ocidental.

Em nossos dias enfim, uma parte importante da filosofia europeia está embebida de ideologias profanas, sucedendo a ideologias religiosas. Falta muito pouco, no dizer de Y. Belaval, para denunciar o que estimam ser uma confusão de gêneros. Tudo isto nos conduz a enunciar a segunda condição de uma confrontação imparcial: não ter dois pesos, duas medidas, uma para a filosofia ocidental, outra para os pensamentos não ocidentais. O critério de «pertinência filosófica» deve funcionar igualmente dos dois lados.

1.3. LER OS TEXTOS INDIANOS

Enfim, o que falta certamente às discussões ocasionais sobre este assunto, é a informação, é a leitura dos textos indianos. O conhecimento pode ouvir-dizer, o mais baixo grau do conhecimento, pode dar lugar a tomadas de posição sumárias, fortificar juízos de valor a priori: todas coisas incompatíveis com uma abordagem metódica e científica. Aí voltamos ao que impede de se começar um verdadeiro debate, a saber o obstáculo linguístico, conjuntamente com o etnocentrismo cultural instintivo que é, com se sabe, a coisa do mundo melhor distribuída. L’Encyclopédie philosophique universelle s’efforce de combattre ces deux obstacles, au niveau du vocabulaire (vol. II) comme des ouvres (vol. III et IV).

Adiantemos que é preciso, em matéria de textos, comparar o que é comparável. O Bhagavad Gita é um intermediário didático na trama de uma epopeia, ele é hoje em dia o evangelho dos hindus, não se deve compará-lo à Crítica da Razão Prática. Não se deve também esperar de um tratado normativo como as Leis de Manu a descrição de um estado de fato. Valeria mais a pena para isso se fiar nas inscrições. Ora, tais erros de leitura são mais frequentes que se possa crer.


  1. «O dia no qual Sócrates viu se esvanecer assim diante de sua reflexões a clareza natural, aquela da evidência e do sentido comum, entrou na filosofia. Pois a filosofia não é outra coisa senão o esforço do espírito para se dar conta da evidência, quer dizer para esclarecer pouco a pouco, em aí descendo, mas de uma luz artificial e sempre instável, este abaixo sempre infinito do pensamento, que a natureza prudente nos rouba a princípio, onde se prepara no entanto a luz natural, permanente, cuja consciência se ilumina, sem se demandar, senão por instantes, de onde ela vem. Digamos audaciosamente, filosofar é explicar, no sentido vulgar das palavras, o claro pelo obscuro, clarum per obscurius. (…) Os prisioneiros da caverna são os prisioneiros da evidência» (Jules Lagneau, Célebres lições e fragmentos, p. 32). A notar que no teatro indiano a evidência (pratyaksa) aparece sob os traços de um personagem cômico. 

Guy Bugault