Burckhardt (Alquimia) – Forma

Titus Burckhardt — Alquimia

O conteúdo qualitativo das coisas não é pertença da matéria, limita-se apenas a refletir-se nela, de tal modo que, muito embora seja possível entrevê-lo, é de facto impossível captá-la plenamente a este nível. Uma ciência que se fundamenta na análise quantitativa, que pensa em termos de atuação e atua em termos de pensamento, pois passará necessariamente por alto a essência qualitativa das coisas. Com efeito, aquilo a que os antigos chamavam a «forma» de uma coisa, ou seja, o seu conteúdo qualitativo, é algo que não conta para si, sendo a isto que, pelo menos em parte, se deve o facto de a Ciência e a Arte, que, na época anterior ao racionalismo, eram termos equivalentes, não terem hoje em dia nada em comum e de a beleza não oferecer à Ciência moderna o mínimo ponto de apoio no plano do reconhecimento.

A diferenciação tradicional entre eidos e hyle — ou «forma» e «matéria» — reflete mui acertadamente o caráter diverso das coisas, simultaneamente quantitativo e qualitativo, já que, enquanto autêntica diferenciação, não se limita a dividir ou decompor, antes tende a apresentar ambas as partes de modo a permitir que se complementem mutuamente. Aristóteles deu expressão dialéctica a esta diferenciação, contudo, não a «inventou», já que ela encontra-se na natureza das coisas e reflete uma visão espiritual primária.

No sentido peripatético do termo, a forma é o conceito das propriedades que constituem a essência de uma dada coisa: assim, designa o seu conteúdo, aquilo que uma coisa é em termos do conhecimento e do espírito, deixando de parte a sua presença material. Por conseguinte, não há que confundir a «forma», entendida neste sentido, com o perfil de uma figura no espaço ou em qualquer outro meio, tal como tão-pouco se pode equiparar a matéria propriamente dita, ou seja, aquilo que é receptáculo da forma e lhe confere uma existência limitada, com o moderno conceito de «matéria».

Com vista a formarmos uma ideia de ambos os conceitos, «forma» e «matéria», podemos recorrer para tanto a uma comparação, a comparação do artista que dá a uma qualquer matéria — argila, madeira, pedra ou metal — uma determinada forma, forma essa já antes preexistente no seu espírito, com aquele que produz uma dada figura ou objecto. No entanto, isto não passa de uma simples comparação, uma vez que a matéria de que o artesão se serve nunca pode ser completamente amorfa. Com efeito, e muito embora ainda não tenha uma forma concreta, a verdade é que já possui determinadas propriedades, pois se assim não fosse tornar-se-ia impossível distinguir a argila da madeira, da pedra ou do metal. A matéria pura e amorfa é algo que não pode ser descrito ou imaginado, já que representa tão-só a faculdade de tomar um dado aspecto, não apresentando, pois, qualquer sinal distintivo, de tal modo que apenas na sua relação com a forma é possível distingui-la. Porém, tão-pouco a forma pode ser apreciada à margem da matéria, pois toda a forma que se vem a manifestar constitui já parte integrante da matéria, e isto mesmo que não passe de uma forma meramente imaginária, visto que a imaginação envolve a essência espiritual da forma numa roupagem de matéria imaginativa.

Uma vez que a essência da forma, independentemente da sua roupagem material, é sempre a mesma — de modo que pode igualmente apelidar-se de forma aquela que apresenta limites materiais definidos —, o conceito revela-se assim algo escorregadio. Por conseguinte, importa ter em conta que, em certas circunstâncias, a mesma palavra — forma — pode possuir significados perfeitamente opostos: assim, considerada enquanto figura externa de um ente ou de uma obra, a forma pode achar-se em oposição ao espírito ou conteúdo daquela, quer dizer, achar-se do mesmo lado da matéria. No entanto, considerada enquanto causa enformadora, que assim imprime na matéria a sua marca, situa-se do outro lado, do lado do espírito ou essência.

Se se comparar esta tese com a ideia cartesiana da matéria, depressa comprovaremos, entre outras coisas, que a extensão no espaço, característica que Descartes atribui à matéria, entra em conflito com o conceito tradicional da matéria, visto que uma extensão no espaço destituída de qualquer forma qualitativa é algo de totalmente inimaginável. Com efeito, e tal como o demonstrou René Guénon (Le Règne de la Quantité et les Signes des Temps, ed. Gallimard, Paris, 1943), a mesma direção possui natureza qualitativa. Contudo, a matéria em si é susceptível de adquirir qualquer forma. Assim sendo, apenas resta a quantidade, a quantidade pura, impossível de se determinar com um número, impossível de se formular enquanto tal. Esta corresponde à matéria signata quantitate, considerada pelos escolásticos como a base do mundo corpóreo, mas só a esta, ou seja, a uma matéria relativa, uma matéria secunda, exclusivamente destinada à existência corporal, não à matéria-prima de todo o Universo, a qual não admite quaisquer designações. Da matéria-prima apenas pode dizer-se que, relativamente à causa enformadora da existência, é sempre meramente receptora, vindo a representar a raiz da diversidade, já que é ela que confere a todas as coisas contorno e limite. Na linguagem bíblica, as águas sobre as quais, no início da Criação, gravitava o Espírito de Deus, correspondem à matéria.

Do mesmo modo que, para se poder entender o conceito de matéria, que escapa a toda e qualquer apreciação racionalista, é necessário reduzi-la ao pólo passivo da existência, também a forma essencial pode ser reduzida ao pólo ativo, isto desde que gradualmente liberta de todas as manifestações condicionadas pela matéria, por mais ténues que estas possam ser. Dado apenas poder desenvolver os dois conceitos de forma e matéria (ou eidos e hyle) até onde a sua ontologia consegue explicar-se em termos lógicos, Aristóteles não chega ao limiar em que, paradoxalmente, a divergência vem a desaparecer, acabando por se fundir numa unidade superior. Pois acontece que a causa enformadora, correspondente ao «ato puro», e a matéria receptora, que surge como totalmente passiva, vêm a complementar-se mutuamente, de tal modo que em si mesmas, e enquanto possibilidades fundamentais e intemporais, passam a tornar-se inseparáveis uma da outra. De um modo geral, ao pólo ativo pode chamar-se ser, ou, melhor dito, essência, e ao passivo matéria ou substância. De certo modo, a essência corresponde ao espírito, já que as formas ou designações essenciais das coisas se acham contidas no espírito a título de «arquétipos».

Face a semelhante argumentação, poderia objectar-se que o conceito da forma não é extensível à descrição «em sentido ascendente» sem anular desse modo a diferença fundamental existente entre a manifestação «formal» e a «supraformal», a qual corresponde à diferença entre o indivíduo e o espírito universal. A isso importa responder que apenas se pode chamar «formal» àquilo que foi «impresso» numa dada matéria em conformidade com uma dada forma. Com efeito, a forma em si pode considerar–se como limitação — «contorno» — ou como «face» de certas propriedades não determinadas materialmente, pelo que, neste último sentido, pode projectar-se inclusive até aos «aspectos» universais do ser. Na realidade, os teólogos medievais das três religiões monoteístas empregam a expressão «forma de Deus» (forma Dei ou, em árabe, as-sûrat-ul-ilahiyah) a fim de designar o conjunto dos atributos divinos. Na sua incondicionalidade, a essência de Deus, que vem a manifestar-se por intermédio destes atributos, acha-se em si mesma acima de todo e qualquer atributo.

Alquimia, Titus Burckhardt