Titus Burckhardt — Alquimia
Excertos de “Alquimia”.
Natureza
«No plano da sua ação, a Arte deve imitar a Natureza», costumavam dizer os alquimistas. O modelo da obra alquímica é a Natureza, a qual vem em ajuda do «artista», ou seja, do alquimista que descobriu o seu modo de obrar e que, jogando com os elementos de que dispõe, consegue terminar aquilo que com tanto esforço iniciou. A expressão «Natureza» reveste aqui um significado muito concreto, pois não designa tão-só a geração espontânea de todas as coisas, mas sim, e sobretudo, uma causa ou uma força unitária cuja verdadeira essência se torna reconhecível mediante observação do seu ritmo universal, o qual domina por igual tanto o mundo exterior quanto o mundo interior.
Uma vez que, de um modo geral, a alquimia ocidental se serve da linguagem da metafísica platônica, há que recorrer a esta a fim de nos inteirarmos do significado que a expressão natura ou physis efetivamente tem. Sem dúvida que é n’As Enéadas, de Plotino (III, 8) que vimos a deparar com a definição mais correta da Natureza: «Caso se perguntasse à Natureza por que realiza ela as obras que realiza, esta responder-nos-ia — caso se dignasse responder — do seguinte modo: «Teria sido melhor não perguntar — ou seja, não indagar com o pensamento —, mas sim aprender em silêncio, como em silêncio eu me quedo, pois não é meu hábito falar (ao contrário do espírito, que se revela por palavras). Uma coisa, contudo, irás ficar a saber: que o meu olhar silencioso contempla tudo quanto existe, um olhar que me é próprio desde o início dos tempos, pois eu mesma procedo de um olhar — ou seja, o olhar da alma universal, olhar que contempla o espírito universal como este contempla o Infinito. Apraz-me olhar, além de que aquele que em mim se olha cria assim ao mesmo tempo o próprio objecto do seu olhar. Deste modo, com o seu olhar espiritual, os matemáticos produzem figuras. Em contrapartida, eu não faço desenhos, limito-me a contemplar, vindo as formas do mundo material a surgir como se de mim tivessem brotado…».
Nesta óptica, a Natureza, no âmbito da sua essência receptiva, revela-se afim da matéria-prima. E, com efeito, das três hipóstases do universo platônico, ela é aquela que vem a situar-se mais perto da matéria-prima (hyle). Acima dela, acha-se a alma universal (psyche) e, sobre esta, o espírito universal (nous), único a olhar o Ser indizível ao mesmo tempo que, ao olhá-lo, trata constantemente de no-lo dar a conhecer. Debaixo dela apenas há a matéria-prima, a base passiva de toda a manifestação, a qual, em si mesma, não participa na criação, permanecendo, por conseguinte, eternamente «virgem». Poder-se-ia dizer da Natureza que esta é o aspecto «maternal» da matéria-prima, já que é ela que «dá à luz», revelando-se activa e motriz enquanto a matéria-prima permanece imóvel.
Muhyi-d-Din Ibn ‘Arabi, o «maior mestre» (ash-sheij al-akbar) da mística islâmica, a quem devemos as mais vastas interpretações dos princípios herméticos, descreve a Natureza universal (tabi’at al-kull) como sendo a parte feminina e maternal da criação. Ela é o «hálito misericordioso de Deus» (nafas arrahmân) que dá omní-moda existência às possibilidades potenciais latentes no «não-ser» (‘udum). É um «hálito» misericordioso porque as possibilidades que hão-de vir a manifestar-se anseiam realmente por o fazer, muito embora esta força também denote um aspecto sombrio e caótico, já que a pluralidade é intrinsecamente confusão e afastamento de Deus
A interpretação dada por Ibn Arabi da Natureza universal, designadamente ao descrevê-la como uma força maternal, de origem divina, benévola e caótica ao mesmo tempo, revela-se aqui particularmente significativa, já que estabelece assim um ponto de contacto com a ideia hindu da shakti, a divina força criadora feminina. De qualquer das formas, já todos os métodos tântricos se referem igualmente à shakti, métodos que são mais afins da alquimia e entre os quais os hindus incluem a alquimia propriamente dita.
Enquanto invocada sob o nome de Kâli, shakti é, por um lado, a Natureza universal que em si mesma abarca amorosamente todos os seres, e, por outro, a força tirânica que os deixa à mercê de todo o tipo de destruição, à mercê da morte, da ação do tempo, da intervenção do espaço que tudo aparta e isola. Por vezes, é representada em termos de uma soberana formosura e, noutras ocasiões, afetando traços os mais horrendos. À semelhança da sua inexplicável essência, a sua cor é estranha e obscura. shakti é ainda maya, a arte divina que imprime nos seres múltiplas e variadas formas e, precisamente por isso, os afasta assim da sua origem una e infinita.
Esta interpretação da divina força criadora provém de uma visão totalmente distinta daquela em que a teologia escolástica se vem a inspirar, ainda que, no essencial, não entre em contradição com esta, pois o facto de a existência tanto ser um dom divino quanto, no respeitante ao ser puro, uma limitação, isso é algo que ressalta igualmente da ontologia clássica que os Doutores da Igreja costumavam ensinar. A particularidade da interpretação que ora nos ocupa, enlaçando a metafísica de um Ibn Arabi com a doutrina hindu da shakti, consiste no facto de, nestas duas visões da existência ou do ser, tanto o aspecto positivo quanto o aspecto negativo partirem de uma mesma raiz, a Natureza universal, natureza que se revela a um tempo maternal e terrível. Contrariamente à ação pessoal de Deus, que constitui o verdadeiro objecto da Teologia, a sua obra ou a sua ação no mundo situam-se num plano impessoal, o qual corresponde ao ponto de vista específico da alquimia, que, consequentemente, nada tem de agnóstico, tanto mais que o conceito de «Natureza», no sentido em que os filósofos do «Iluminismo» o costumavam usar, provinha — por via de uma distante analogia derivada de más interpretações — da natura hermética. Com efeito, se esta, por via da dessacralização da ciência natural, acabou por se converter num vago e acomodaticio substituto de Deus, isso deve-se ao facto de o horizonte teológico se ter contraído de tal modo que, em função disso, se tornava difícil apreender ao mesmo tempo as duas manifestações de Deus: a «pessoal» e a «impessoal».