Extraído de Introduction aux Doctrines Ésoteriques de l’Islam, Dervy Livres, Paris, 1969 (TB-DEI) (tradução espanhola de Jesus Garcia Varela: Esoterismo Islâmico, Taurus Ediciones, Madri, 1980). Utilizamos a tradução espanhola devido a sua qualidade, e em particular, às notas explicativas do tradutor. Tradução para o português de Arminda Eugenia Campos e Roberto Bartholo Jr. Os acentos dos termos árabes do original e da tradução foram retirados para facilitar a composição da página Internet.
O sufismo (at-tasawwuf1 ), o aspecto esotérico, ou (batin) do Islã, distingue-se do Islã exotérico ou “exterior” (zahir) do mesmo modo que a contemplação direta das realidades espirituais — ou divinas — se diferencia das leis que as refletem na ordem individual, em relação às condições de um determinado ciclo da humanidade. Enquanto a via2 habitual dos crentes pretende a obtenção de um estado benéfico após a morte, acessível em virtude de uma participação indireta, e, pode-se dizer, simbólica, nas verdades divinas, através das obras prescritas, o sufismo tem seu fim em si mesmo, no sentido de que pode dar acesso ao conhecimento imediato do eterno. Este conhecimento, por ser uno com seu objeto, liberta da cadeia inevitável das existências individuais.
O estado espiritual de baqa, a que aspiram os contemplativos sufis, e cujo nome significa a “subsistência” pura, além de qualquer forma, é igual ao estado de moksha ou a “libertação”, de que falam as doutrinas hindus, da mesma forma que a “extinção” (al-fana) da individualidade, que precede a “subsistência”, é análoga ao nirvana, como ação negativa.
Para que o sufismo implique em tal possibilidade, deve identificar-se com o “núcleo” (al-lubb) da forma tradicional que lhe serve de suporte. Não pode sobrepor-se ao Islã, pois teria um caráter periférico em comparação com os meios espirituais deste último. Está, ao contrário, mais próximo a sua origem supra-humana do que o exoterismo religioso, e participa ativamente, ainda que de maneira completamente interior, na função renovadora que esta forma tradicional manifestou e que continua mantendo-a com vida.
Este papel “central” do sufismo no seio do mundo islâmico pode estar oculto aos espectadores do exterior porque o esoterismo, por ser consciente do significado das formas, é ao mesmo tempo intelectualmente soberano em relação a elas, de modo que pode assimilar, ao menos para sua exposição doutrinal, algumas noções ou símbolos que procedam de uma herança diferente de sua raiz tradicional peculiar. Pode parecer estranho que o sufismo seja o “espírito” ou o “coração” do Islã (ruh al-islam ou qalb al-islam) e que ao mesmo tempo represente, dentro do mundo islâmico, o espírito mais livre em relação aos limites mentais deste mundo. (É importante não confundir esta verdadeira liberdade, completamente interior, com os movimentos rebeldes à tradição que não são intelectualmente livres em relação às formas que negam porque não as compreendem.) Por isso, o papel do sufismo no mundo islâmico3 é semelhante ao do coração no homem, no sentido de que o coração é o centro vital do organismo e também, em sua realidade sutil, a “sede” de uma essência que transcende qualquer forma individual.
Os orientalistas, atentos em reduzir tudo ao plano histórico, quase nunca podem explicar esse duplo aspecto do sufismo, a não ser por influências alheias ao Islã; deste modo atribuíram a origem do sufismo, segundo suas diferentes preocupações, a fontes iranianas, hindus, neoplatônicas ou cristãs. Mas essas atribuições divergentes terminaram por equilibrar-se reciprocamente, ainda mais se se leva em conta que não existe razão suficiente para pôr em dúvida a autenticidade histórica da filiação espiritual dos mestres sufis, filiação que, numa “cadeia” (silsilah) ininterrupta, remonta até o Profeta.
O argumento decisivo a favor da origem muhammadiana do sufismo reside, entretanto, em si mesmo. Se a sabedoria sufi procedesse de uma fonte situada à margem do Islã, os que aspiram a esta sabedoria — que, com segurança, não é de natureza livresca ou simplesmente mental — não poderiam apoiar-se, para realizá-la sempre de novo, no simbolismo corânico. Tudo que forma parte integrante do método espiritual do sufismo é extraído, de maneira constante e necessária, do Corão e dos ensinamentos do Profeta.
Os orientalistas, que sustentam a hipótese de uma origem não-muçulmana do sufismo, em geral sublinham o fato de que a doutrina sufi não aparece nos primeiros séculos do Islã com todo o desenvolvimento metafísico que conterá mais tarde. Mas esta observação, caso seja válida em relação a uma tradição esotérica — transmitida principalmente por meio de um ensino oral —, demonstra o contrário daquilo que se pretende, pois os primeiros sufis se expressavam com uma linguagem muito próxima do Corão e suas expressões concisas e sintéticas carregam em si mesmas o essencial da doutrina. Se, posteriormente, esta vai se tornando mais explícita e elaborada, isto não é mais que um fato normal e característico de qualquer tradição espiritual: a literatura doutrinal aumenta, não tanto pelo aporte de novos conhecimentos quanto pela necessidade de pôr um freio nos erros e reanimar uma intuição que se vai debilitando.
Por outro lado, como as verdades doutrinais são suscetíveis de um desenvolvimento indefinido e a civilização muçulmana havia absorvido algumas heranças pré-islâmicas, os mestres sempre podiam, em seu ensino oral ou escrito, fazer uso de noções tomadas desses legados, desde que fossem adequados às verdades que era preciso tornar acessíveis às melhores mentes de sua época, verdades que o simbolismo sufi, no sentido estrito, já incluía de modo sucinto. Desta forma, e em particular a cosmologia, ciência derivada da metafísica pura, que constitui o fundamento doutrinai indispensável do sufismo, se expressava, em sua maior parte, através de noções já definidas por antigos mestres, como Empédocles e Plotino. Além disso os mestres sufis que tinham uma cultura filosófica não podiam ignorar a validade dos ensinamentos de Platão, e o platonismo que se lhes atribui é da mesma ordem que o dos Padres gregos, cuja doutrina continua, entretanto, essencialmente apostólica.
A ortodoxia do sufismo não se manifesta unicamente na conservação das formas islâmicas; se expressa igualmente por seu desenvolvimento orgânico a partir do ensinamento do Profeta e, em especial, por sua capacidade de assimilar qualquer forma de expressão espiritual que não seja essencialmente alheia ao Islã. Isto não se aplica apenas às formas doutrinais, mas também a questões secundárias que tenham relação com alguma arte4.
Ainda que, seguramente, tenha havido contatos entre os primeiros sufis e os contemplativos cristãos — como demonstra a história do sufi Ibrahím ibn Addam5 —, certo parentesco entre o sufismo e o mona-quismo do Oriente não se explica a priori apenas por interferências históricas. Tal como ‘Abd al-Karim al-Jili o explica, em seu livro al-Insan al-Kamil (o Homem Universal6 ), a mensagem de Cristo “descobre” alguns aspectos interiores — e portanto esotéricos — do monoteísmo de Abraão: os dogmas cristãos, que podem ser reduzidos em sua totalidade ao dogma das duas naturezas, divina e humana, de Cristo, de certa forma resumem, de forma “histórica”, tudo o que o sufismo ensinará sobre a união com Deus. Por isso os sufis pensam que o Senhor Jesus (Sayydna ‘Isa) representa, entre os enviados divinos (rusut), o tipo mais perfeito do santo contemplativo: oferecer a face esquerda a quem nos bateu na direita é o desapego espiritual por excelência, a retirada voluntária para fora do jogo das ações e reações cósmicas.
Isto não quer dizer que, para os sufis, a pessoa de Cristo situe-se na mesma perspectiva que para os cristãos. Apesar de todas as semelhanças, a via dos sufis difere muito da dos contemplativos cristãos. Podemos nos referir aqui à imagem segundo a qual os diferentes caminhos tradicionais são como os raios de um círculo que se unem num único ponto: na medida em que os raios se aproximam do centro, também se aproximam entre si: nunca coincidem, a não ser no centro, onde cessam de ser raios. Esta distinção dos caminhos evidentemente não impede o intelecto de se situar, por antecipação intuitiva, no centro, para onde todos convergem.
Para precisar melhor a constituição interna do sufismo, acrescentamos que ele sempre compreende, como elementos indispensáveis, uma doutrina, uma iniciação e um método espiritual. A doutrina é como uma prefiguração simbólica do conhecimento que se trata de conseguir e também, em sua manifestação, um fruto deste conhecimento. A quintessência da doutrina sufi vem do Profeta; mas como não há esoterismo sem uma certa inspiração, a doutrina sempre se manifesta de novo pela boca dos mestres. Em consequência, o ensinamento oral é superior, por seu caráter imediato e “pessoal”, ao que se possa obter dos escritos. Esses últimos desempenharam um papel secundário, como preparação, complemento ou ajuda para a memória e, por esta razão, a continuidade histórica do ensinamento sufi se subtrai, ocasionalmente, às investigações dos eruditos.
Quanto à iniciação sufi, consiste na transmissão de uma influência espiritual (barakah), que deve ser conferida por um representante da “cadeia”, que tem sua origem no Profeta. E em geral transmitida pelo mestre, que também comunica o método e proporciona os meios de concentração espiritual apropriados às atitudes do discípulo. O marco geral do método é a Lei islâmica, ainda que sempre tenha havido sufis isolados que, por causa do caráter excepcional de seus estados contemplativos, deixaram de participar do ritual ordinário do Islã. Para prevenir qualquer objeção que se pudesse deduzir do que acabamos de dizer em relação à origem muhammadiana do sufismo, precisaremos que os suportes espirituais — que constituem seus principais meios — e que, em certas circunstâncias, podem substituir o ritual habitual do Islã — se apresentam como as “pedras angulares” de todo o simbolismo islâmico e, nesse sentido, foram dados pelo próprio Profeta.
A iniciação toma, comumente, a forma de um pacto (bay’ah) entre o candidato e o mestre espiritual (al-murshid), que representa o Profeta. Este pacto implica a total submissão do discípulo ao mestre em tudo o que se refere à vida espiritual e não pode nunca ser anulado pela vontade unilateral do discípulo.
Os diferentes “ramos” da filiação espiritual do sufismo correspondem, de forma muito natural, aos diversos “caminhos” (turuq). Cada grande mestre, a partir do qual pode ser determinado o começo de uma cadeia particular, tem autoridade para adaptar o método às aptidões de uma determinada categoria de homens dotados para a vida espiritual. Os diferentes “caminhos” correspondem, portanto, às diferentes “vocações” e estão orientados para o mesmo fim; não representam de modo algum cisões ou “seitas” no interior do sufismo, ainda que tenham podido se produzir incidentalmente desvios parciais que deram lugar a verdadeiras seitas. O sinal exterior de uma tendência sectária será sempre o caráter quantitativo e “dinâmico” da propagação. O sufismo autêntico nunca pode chegar a ser um movimento7, em função de recorrer ao que há de mais “estático” no homem, o intelecto contemplativo8.
Assinalaremos, a esse respeito, que se o Islã pôde manter-se intacto através dos séculos, apesar da natureza tão volúvel do psiquismo humano e das divergências étnicas dos povos que abarca, não é, a princípio, por causa de seu caráter relativamente dinâmico, que lhe é característico como forma coletiva, mas porque implica, desde a sua origem, e por destino, a possibilidade de uma contemplação intelectual que transcende a corrente das afetividades humanas.
Segundo a explicação mais comum, at-tasawwuf significaria unicamente “vestir-se de lã” (suf); os primeiros sufis, diz-se, não usavam nada além de vestes de pura lã. O que nunca se observou foi que muitos ascetas judeus e cristãos dos primeiros tempos se cobriam apenas com peles de carneiro, como São João Batista. É possível que este exemplo fosse seguido também por alguns dos primeiros sufis. Apesar de tudo isso, “vestir-se de lã” pode ser apenas um significado externo e popular do termo tasawwuf, que é equivalente, em seu simbolismo numérico, a al-hikmat al-uahiyya, “A Sabedoria Divina”. Al-Biruni sugere a derivação de sufi (plural: sufiya) do grego Sophia, Sabedoria, mas esta derivação é insustentável, de um ponto de vista etimológico, já que a letra grega sigma se transforma normalmente em sin em árabe e não em sad. Contudo, pode haver neste caso uma consonância voluntária e simbólica. Cf. René Guénon, L’ésotérisme islamique, revista Cahiers du Sud, 225 ano, 1935. ↩
Traduzimos voie, indistintamente, por via, caminho ou senda, termos equivalentes para designar o processo de realização espiritual de acordo com um método tradicional (nota da tradução espanhola). ↩
Referimo-nos ao sufismo em si mesmo, não a suas organizações iniciáticas. Os grupos humanos podem recobrir-se com funções mais ou menos contingentes, apesar de sua conexão com o sufismo; a elite espiritual é dificilmente perceptível do exterior. De outro lado, é um fato bem conhecido que um grande número dos mais eminentes defensores da ortodoxia islâmica como ‘Abd al-Qadir Jilani, al-Ghazzali, o sultão Salah ad-Din (Saladino) e outros estiveram vinculados ao sufismo. ↩
Alguns sufis manifestaram, intencionalmente, atitudes que, sem serem contrárias ao espírito da Tradição, ofendiam a generalidade dos exoteristas. Era uma maneira de liberarem-se do psiquismo coletivo e dos costumes mentais. ↩
Sufi da segunda metade do século II da Hégira (777), originário de Balkh (Khurasan — Turquestão), morto expatriado na Síria. I. Goldziher vê, nesta legendária figura, uma imitação da biografia de Buda. Cf. Le Dogme et la Loi en Islam (tradução F. Arin), ed. Geuther, Paris, 1920, p.134. Para comentários sobre sua conversão e ahadith atribuídos, ver Mystique Musulmane de G.C. Anawatii e L. Gardet, Librairie Philosophique J. Vrin, Paris, 1976, págs. 30 e 31. Ver também Propos d’amour des Mystiques Musulmans, de René Khawan, Editions de L’Orante, Paris, 1960, págs. 19 e ss. (nota da tradução espanhola). ↩
‘Abd al-Karim b. Ibrahim al-Jili, nasceu no ano de 767 da Hégira em Jil, na região de Bagdá. E considerado continuador do ensinamento metafísico de Ibn ‘Arabi. Ver De l’Homme Universel, extratos do livro Al-Insan al-Kamil, deste autor, traduzidos e comentados por T. Burckhardt, Dervy Livres, Paris, 1975 (nota da tradução espanhola). ↩
Caso de algumas turuq, como a Qadiriyya, a Darqawiyya, a Naqsbandiyya etc., que compreendem círculos exteriores e, por isso, uma expansão popular, não é comparável aos movimentos sectários, já que esses círculos não se opõem ao exoterismo, do qual se apresentam às vezes como modalidades mais intensas. A expansão popular dos turuq de essência intelectual se explica, além disso, pelo fato de que o simbolismo esotérico é, de alguma forma, acessível ao povo, ainda que nem sempre o seja para os doutores da Lei. ↩
O que hoje, de modo habitual, se chama “intelecto” não é na realidade mais que a faculdade discursiva, que se distingue precisamente por seu dinamismo e sua agitação do intelecto propriamente dito, imutável em si mesmo e sempre imediato e sereno em suas operações. ↩