JOAQUIM CARREIRA DAS NEVES — ESCRITOS DE SÃO JOÃO
Em Jo 17,3, o Jesus joanico tem uma declaração que resume muito bem toda a doutrina da salvação do quarto evangelho: “Esta é a vida eterna: que te conheçam a ti, único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem tu enviaste” (autê de estin hê aiônios dzôê ina ginôskôsin se ton mónon alêthinon Theon kai hon apesteilas Iêsoun Chríston).
Esta declaração é prenhe de sentido e necessita de ser compreendida nas suas quatro afirmações principais.
A primeira afirmação tem a ver com a expressão VIDA ETERNA. Já a encontramos várias vezes e já sabemos que é importante na cristologia do quarto evangelho. Significa, nada mais nada menos do que salvação, ou, se quisermos, a plenitude do próprio evangelho (boa nova) realizada no cristão de feição joanica. Dizer “vida eterna” é dizer “evangelho” realizado na vida do cristão, e não há evangelho realizado sem salvação. Só quem acredita no evangelho de Jesus (genitivo objectivo) como Messias e Filho de Deus é que tem a “vida eterna”. Logo, a vida eterna já se realiza nesta terra (escatologia presentista-realizada).
Uma vez que João não refere a doutrinação de Jesus centrada no Reino de Deus, ao contrário da tradição sinóptica, muitos exegetas defendem que a expressão VIDA ETERNA desempenha as funções do REINO DE DEUS sinóptico. Penso que esta aproximação de identidade é demasiado simplista, embora o seu objectivo seja o mesmo: a salvação como realização última do plano de Deus. O centro da salvação passa pela pessoa de Jesus (cristocentrismo), e não mais pela Lei de Moisés nem pelos anúncios temporais e históricos dos profetas. Tais anúncios chegaram ao fim. Neste sentido, o REINO DE DEUS dos Sinópticos pode interpretar-se de maneira apenas temporal e reivindicativa (Lc 24, 21 :”Nós esperávamos que fosse ele o que viria redimir (litrousthai) Israel…”; Ac 1, 6: “Senhor, é agora que vais restaurar (apokathistaneis) o Reino de Israel?”), ao contrário da VIDA ETERNA de João. Em sentido oposto, a VIDA ETERNA de João facilmente pode ser interpretada com sentido puramente intimista, reflexivo, ou, até, esotérico.
Também é verdade que a expressão VIDA ETERNA aparece nos Sinópticos como equivalente de REINO DE DEUS (Mc 9, 43: “Se a tua mão é para ti ocasião de queda, corta-a, mais vale entrares mutilado na VIDA, do que, com as duas mãos, ires para a geena, para o fogo que não se apaga”; 9, 45. 47; 10, 17-30: “Bom Mestre, que devo fazer para alcançar a VIDA ETERNA?… v. 23: “Quão difícil é entrarem no REINO DE DEUS os que têm riquezas?”… v. 26: “Quem pode, então, SALVAR-SE?…”; cf. par. Mt 19, 23-29 e Lc 18, 24-30).
No AT, a expressão VIDA ETERNA significava a VIDA QUE HAVIA DEVIR (Dn 12, 2: “Muitos dos que dormem no pó da terra acordarão, uns para a VIDA ETERNA, outros para a ignomínia, para a REPROVAÇÃO ETERNA”; Sls. Salomão 3, 12; 13,11; 14,10; 1Henoc 37,4; 58,3). Os textos são de sabor apocalíptico: os judeus esperavam o novo “éon” com uma nova VIDA. Pois bem, tanto os Sinópticos como João afirmam que essa VIDA já chegou com a pessoa de Jesus para todos quantos nele acreditam. Neste particular, tanto os Sinópticos como João afirmam a mesma coisa.
Deus é eterno e a vida que ele dá só pode ser uma vida eterna. Nele não há tempo nem espaço, mas os humanos vivem circundados de tempo e espaço; simplesmente, quem acredita faz um ato de vida também sem tempo nem espaço, a menos que a crença / fé esteja sujeita ou dependente dum Deus sujeito a um povo, história e geografia, como era o caso do Judaísmo. Jesus apresenta-se com outra face de Deus, povo e história na categoria teológica REINO DE DEUS dos Sinópticos e VIDA ETERNA de João.
Só a categoria teológica VIDA ETERNA serve os desígnios teológicos de João para poder afirmar em 5,26: “pois, assim como o Pai tem a VIDA em si mesmo, também deu ao Filho o poder de ter a VIDA em si mesmo “. Voltando a 17,3, quem conhece o “único Deus verdadeiro e Jesus Cristo a quem ele enviou” tem a VIDA ETERNA. No pensar de
João, o “único Deus verdadeiro” já não é bem o Deus de Moisés e dos profetas, mas o Deus revelado só agora por Jesus Cristo. A evocação de Jesus Cristo já é típica da fé da Igreja: nem só “Jesus” nem só “Cristo”, mas “Jesus Cristo”.
A segunda afirmação-revelação decorre, então, desta verdade à volta da pessoa de Jesus como Cristo, o Messias que veio “revelar” o Pai.
A terceira afirmação consiste na modalidade desta “revelação”:”que te conheçam a ti…”. Não se trata duma revelação segundo a modalidade duma teofania ou cristofania, mas segundo a modalidade dum ato cognoscitivo. O texto não emprega o verbo “acreditar” ou “confessar”, mas “conhecer”. Sem dúvida que em João estes três verbos são complementares, para não dizer homônimos, mas o que está na raiz do verbo “conhecer”, segundo o contexto, é a catequese ou o Credo eclesial da(s) comunidade(s) joanica(s). O crente é chamado a dar uma resposta de fé “racional”, pensada e estudada, a este “único Deus verdadeiro”.
A quarta afirmação consiste na verdade de fé sobre “Jesus Cristo que tu enviaste”. O ENVIADO de Deus é que revelou este “único Deus verdadeiro”. Voltamos sempre à fonte do quarto evangelho: o Verbo incarnado é o emissário deste Deus que veio à terra para o “dar a conhecer” (1, 18: “A Deus jamais alguém o viu. O Filho Único, que é Deus e está no seio do Pai, foi ele quem o veio narrar”). Enquanto que em 1,18 temos o verbo exègèsato (exègeomai = narrar), em 17,3 temos o verbo gignoskô (conhecer). A semântica é a mesma — o Verbo veio “narrar”, “revelar”, “dar a conhecer”, “mostrar”, “manifestar”. O sentido gira à volta de Deus que se conhece ou por via legal, ou apocalíptica, ou profética, ou sapiencial. João é polissêmico na apresentação da revelação de Deus feita pelo Filho / Verbo / Messias. O Filho/Verbo veio a este mundo “estabelecer a sua tenda” (1,14); logo, veio como Homem e Filho do Homem para “narrar” e “dar a conhecer” a sua vida junto dos humanos segundo a sua verdade possuída desde o “seio do Pai”. Estamos muito mais com a semântica da narração bíblica do que com a gnosiologia cognoscitiva dos gregos. Nem a gnosiologia cognoscitiva dos gregos poderia trazer a salvação, nem a vida espiritual legal dos judeus (1, 17: “E que a Lei foi dada por Moisés, mas a graça e a verdade vieram-nos por Jesus Cristo”). A salvação é esta “graça” e esta “verdade” que recebemos do Pai por Jesus Cristo, de maneira, ao mesmo tempo, apocalíptica, profética, sapiencial, mas, especialmente, narrativa. Deus é eterno e o Filho também é eterno, mas, como Verbo incarnado, a terra e a história ficam, agora, prenhes de eternidade. O Verbo é o Filho do Homem, que tem um nome comum e normal igual a milhares de outros judeus: chama-se JESUS e vive em Nazaré com o pai José, a mãe Maria e seus “irmãos” (Jo 1, 45-46; 2, 12; 6, 42; cf.7, 41. 52). Sem esta história humana Jesus não podia narrar o Pai com a teologia da “graça” e da “verdade”. A salvação é, assim, a apropriação do crente em Jesus desta graça e verdade, como ato consciente e racional, por um lado, e como dom maior da VIDA ETERNA. O invisível e eterno torna-se visível na visibilidade da fé incarnada em seres humanos.
A salvação — graça — verdade — vida eterna — é, também, um ato de julgamento (3, 16-21: v. 18: “Quem nele crê não é condenado, mas quem não crê já está condenado, por não crer no Filho Único de Deus”; 3, 36: “Quem crê no Filho tem a vida eterna; quem se nega a crer no Filho não vera a vida, mas sobre ele pesa a ira de Deus”). Trata-se dum julgamento que depende da verdade do “nascer de novo”, ou “nascer do Alto” (gennaô anôthen) (3, 3-8). E um ato do Espírito que sopra onde quer, mas que não existe sem a narrativa operativa do batismo (3, 5: “Quem não nascer da água e do Espírito não pode entrar no Reino de Deus”).
O julgamento anda ligado ao testemunho que Jesus dá do Pai e vice-versa. Uma vez mais, a salvação tem sempre uma origem ao mesmo tempo histórica e narrativa, e invisível e intemporal (3,1 l-12:”Em verdade, em verdade te digo: nós falamos do que sabemos e damos testemunho do que vimos, mas vós não aceitais o nosso testemunho. Se vos falei das coisas da terra (teologia narrativa e incarnada) e não credes, como é que haveis de crer quando vos falar das coisas do Céu?” (teologia intemporal baseada na invisibilidade da fé, graça e verdade).
A salvação exige, da parte da pessoa, um ato consciente de decisão pela fé em Jesus Cristo. Ninguém nasce com fé. A salvação é, ao mesmo tempo, um ato do poder de Deus e um ato de responsabilidade humana. Pela parte que toca a Deus, Deus é sempre fiel em graça e verdade, mas, pela parte que toca ao homem, o homem pode falhar. Não há, aqui, como em tudo o mais, qualquer predestinacionismo, mas tão somente o mistério da graça e do Espírito. O Jesus joanico afirma isto mesmo duma maneira muito clara em 6, 44-45: “Ninguém pode vir a mim, se o Pai que ME enviou o não atrair; e eu hei-de ressuscitá-lo no último dia. Está escrito nos profetas: E todos serão ensinados por Deus. Todo aquele que escutou o ensinamento que vem do Pai e o entendeu (mathôn) vem a mim”).
A salvação confunde-se, portanto, com a revelação que Jesus apresenta sobre o Pai e que o Pai, por sua vez, apresenta sobre o seu Filho. Como veremos, o Jesus joanico também apresenta o Paráclito como o revelador do Pai e do Filho. A circularidade da teologia, cristologia e pneumatologia é fundamental em João. Nunca sabemos onde começa e termina a função do Pai, do Filho e do Espírito, mas a maioria dos textos dirige-se para a revelação do Filho. A afirmação, por demais conhecida e comentada de 14, 6: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida”, é um sumário desta salvação centrada na pessoa do Filho. Os três conceitos são participativos dum único conceito: a verdade e a vida estão em função do caminho, como o caminho em função só da verdade e só da vida, ou, então, de ambas, ou, ainda — proposta exegética de que mais gosto — o caminho e a verdade em função da VIDA. Deus é VIDA e o Filho é o seu mensageiro e revelador final, não apenas no tempo como também, e sobretudo, no significado. Nem Moisés ou qualquer outro profeta poderiam ter a ousadia de proclamar semelhante afirmação. E se assim é, só em Jesus, e no Deus que ele revela, está a verdade total e a vida total porque foi encontrada ao fim do caminho que ele estabeleceu e revelou. Desta forma, a salvação não é uma aquisição filosófica, mas a aquisição última da revelação que o Verbo / Messias / Filho propõe ao mundo dos discípulos e dos judeus. Não é uma abstração mas uma adesão de fé a esta revelação última.
Se a salvação consiste em aderir a esta revelação final, a morte de Jesus, — de maneira algo diferente dos Sinópticos e de Paulo -, não tem em vista uma salvação de expiação pelo sangue de Jesus. Assim se compreende que a Cruz, na perspectiva de João, seja o sinal maior da glória. Ele morre como morre para que todos os dispersos e abandonados se reencontrem unidos na família última dos salvos (10,1-18; 11,46-52; 12, 20-33; cf. 12, 32: “E eu, quando for erguido da terra, atrairei todos a mim”; 12, 51b-52: “…profetizou que Jesus devia morrer pela nação, e não só pela nação, mas também para congregar na unidade os filhos de Deus que estavam dispersos.” Jesus oferece a sua vida (10,18), não de maneira cruenta como oferta ao Pai à maneira dos sacrifícios do Templo, mas como o trigo que morre para ser VIDA (12,23-24: “Chegou a hora de se revelar a glória do Filho do Homem. Em verdade, em verdade vos digo: se o grão de trigo, lançado à terra, não morrer, fica ele só; mas, se morrer, dá muito fruto.”). E assim se compreende que João coloque Jesus na Cruz precisamente no momento em que os cordeiros pascais estavam a ser imolados no Templo (19, 31. 36( = Ex 12, 46). Esta VIDA confunde-se com o AMOR (13, 1: “Antes da festa da Páscoa, Jesus, sabendo bem que tinha chegado a sua hora da passagem deste mundo para o Pai, ele, que amara os seus que estavam no mundo, levou seu amor por eles até ao fim”; cf. 3, 16-17; 15, 13).