Centeno: O Conto da Serpente Verde

Excertos do livro de Yvette Centeno, A SIMBOLOGIA ALQUÍMICA NO CONTO DA SERPENTE VERDE DE GOETHE

O Conto da Serpente Verde1 de Goethe, escrito em 1795, ainda hoje é, de todas as suas obras, aquela que nos deixa mais perplexos.

Integra-se numa obra a que o autor deu o título de Conversas de Emigrantes Alemães. Mas nem o título, nem o teor geral das histórias narradas, ajudam a entender melhor o Conto com que a obra finaliza. Várias histórias são contadas pelos emigrantes uns aos outros, que assim vão matando as horas que têm de passar juntos. A ameaça do invasor francês foi a causa que os reuniu. Mas este pormenor histórico serve meramente de pano de fundo, não condiciona em mais nada os episódios que entre os emigrantes depois vão ocorrendo. Nem chega a modificar a natureza das histórias que são contadas. Estas relacionam-se com o mundo do sobrenatural, ou então pretendem que o leitor delas extraia alguma moralidade. A baronesa de C., viúva de meia-idade, em cuja residência os emigrantes se encontram reunidos, fala com insistência da generosidade de alma que é necessário ter, da capacidade de se sacrificar por outrém, pelo bem alheio, pelo bem comum, ’fuer andere zu leben, fuer andere sich aufzuopfern’, ’viver para os outros, sacrificar-se pelos outros’, eis uma qualidade rara que dificilmente se encontra nas pessoas,2 diz ela. Algumas das histórias contadas pelo velho sacerdote são como que comentários a esta afirmação. E no Conto veremos como o sacrifício de um pelo bem de muitos é a forma que melhor conduz à auto-realização, à perfeição.

Já para os seus contemporâneos o Conto permaneceu um enigma. O sacerdote que narra a história limita-se a dizer dela que fará lembrar ’tudo e nada’. E Goethe não prestará, como autor, mais esclarecimentos. Numa carta a Humboldt, de 27 de Maio de 1796, afirma que lhe foi difícil ser ’ao mesmo tempo significativo e não dar uma interpretação3. Reconhece que se trata de uma obra de carácter simbólico, mas nada diz de concreto sobre o seu simbolismo.

Ronald D. Gray em Goethe the Alchemist4 the Alchemist, Cambridge University Press, 1952.)) debruça-se sobre o mistério do Maerchen, que define como um ’conto de fadas, carregado de profecias misteriosas e de fantasias alegóricas, ou simbólicas, de natureza alquímica’. O Maerchen de Goethe, escreve Gray, é o ’rubi sem rival das alegorias alquímicas’.

De fato é para o domínio da alquimia, do seu mundo secreto, arquetípico, que o Conto nos arrasta, logo desde as primeiras páginas.

O sacerdote pede, antes de começar, que lhe deem algum tempo, para que, depois do seu habitual passeio, da raiz da alma lhe possam aflorar à consciência as ’singulares imagens’ que outrora tantas vezes o tinham entretido.5

E é à noite que inicia a narrativa.

Que Goethe noutros tempos também se tinha entretido com os mistérios da alquimia, sabemos nós muito bem. Fraeulein von Klettenberg foi a sua iniciadora. Agnès Bartscherer, em Paracelsus, Paracelsisten und Goethes Faust6 chama a atenção para o fato de Goethe em 1769 ter sido curado da sua longa doença pela ’tintura universal’ de um sábio paracelsista.

Das obras que leu e meditou durante o tempo desta doença, em Frankfurt, podemos destacar as de Paracelso, (como é lógico, quanto mais não seja devido ao misterioso processo da sua cura), as de Boehme, a célebre Aurea Catena Homeri, e a não menos célebre Opus Mago-Cabbalisticum de Welling, bem como obras de Christian Rosenkreutz, de Basilius Valentinus, de Agrippa von Nettesheim, de Starkey, van Helmont, etc.7

Mas quantas outras obras não poderá ele ter lido, sem que o fato ficasse assinalado? Seja como for, em todas elas determinados símbolos constantemente se repetem, símbolos de que Goethe virá depois a servir-se, e muito explicitamente no Maerchen. Só à luz destes símbolos o conto se deixa desvendar.

Ronald Gray aponta como esquema básico da concepção alquímica ’uma polaridade inicial e um conflito de opostos, caracterizados pela divisão geral do macho e da fêmea, da luz e das trevas, e representando o estado de tensão que existe no mundo da natureza. A esta tensão não se pode fugir, mas ela pode ser vencida pela renúncia a diferenciação pessoal, pela morte do eu. Esta morte é simbolizada ao mesmo tempo como uma rotação e como um regresso à origem das coisas, na qual uma centelha de vida pode ser descoberta. Alimentando-se desta centelha o adepto renasce, identifica-se com Deus, e esta identificação é representada como uma união entre o macho e a fêmea’.8 Elaborado em conto, transposto para um clima de maravilhoso, este esquema é o esquema do Maerchen.

Os acontecimentos narrados obedecem a uma imprevisível lógica, tão interior como a dos sonhos, e da qual só Goethe verdadeiramente nos poderia dar uma chave completa. Mas não o quis fazer.

As personagens que participam das grandes mutações verificadas no conto surgem de repente, sem serem anunciadas nem justificadas umas perante as outras e menos ainda perante o leitor. E mal surgem misturam-se e intervêm numa ação que está em curso e de que fazem parte integrante, como se conclui pela leitura, embora nada antes tivesse sido dito que o fizesse prever. E logo influem sobre os acontecimentos, e reagem umas perante as outras com a maior das naturalidades, como se tudo já tivesse sido explicado algures (noutro tempo, noutro espaço, noutra dimensão da narrativa) como se tudo fosse por demais evidente, o que não é o caso, e muito menos para o leitor desprevenido. Só mergulhando no mundo do inconsciente, só regressando a um tipo de imagens mais do que ’singulares’ (como disse Goethe) oníricas ou arquetípicas, se pode entender o Conto.

As personagens e os acontecimentos sucedem-se, apontando para uma grande mutação, para uma grande revelação final. Que personagens? Os fogos-fátuos, o velho barqueiro que os atravessa para o outro lado do rio, o próprio rio, a serpente verde, a bela Flor-de-Lis, o gigante, o rei de ouro, o rei de prata, o rei de bronze, e o rei dos três metais imperfeitamente misturados, o homem da lanterna, a sua mulher, o cão Mops, o Jovem, o canário, o Açor, etc. Ainda outros elementos intervêm, como o ouro, a luz, as pedras preciosas, os frutos da terra com que se deve pagar a travessia ao barqueiro e ao rio, o santuário ou templo, em que a serpente penetra e onde se encontram as estátuas dos quatro reis, esperando ’que chegue o momento’ e onde a conjunção final do rei e da rainha terá lugar (quando se cumprir a profecia e o templo surgir das águas) a ponte — tudo elementos de natureza simbólica que vão indicando, à medida que surgem, novas fases do desenrolar da ação.


  1. O título original é Das Maerchen, isto é. O Conto, mas nas traduções vulgarizou-se como título O Conto da Serpente Verde. Por isso o denomino assim. 

  2. Hamburger Ausgabe, vol. 6, pag. 129. A esta edição das obras completas de Goethe serão referidas todas as citações. 

  3. Opus cit. 

  4. Gray, Ronald Douglas: ((Goethe 

  5. Pag. 209, Maerchen, opus cit. 

  6. Dortmund, 1911. 

  7. Noggler, Joseph: Goethe und die Alchimie, 1949. Ver ainda vol. 9 (Edição de Hamburgo) pag. 342: Dichtung und Wahrheit, 2a. parte, livro 8. 

  8. Gray, Ronald D., opus cit., capit. VI. 

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