A soberania absoluta da letra, à qual, como vimos, o próprio Profeta está sujeito, é demonstrada por muitas passagens em suas obras. Assim, tendo aludido no Futuhat ao versículo Wa huwa ma’akum aynamâ kuntum (“E Ele está com você onde quer que você esteja”, Cor. 57:4) usando inadvertidamente haythumâ — que tem o mesmo significado — em vez de aynamâ — o xeique al-Akbar imediatamente pede perdão a Deus por ter se afastado da literalidade do texto sagrado porque, diz ele, “não é em vão que Deus deixa de lado uma palavra para preferir outra”. Qualquer ataque à letra é, portanto, uma forma desse tahrîf, essa alteração da Palavra de Deus que é reprovada pelo Povo do Livro (Cor. 2:75; 5:13). Essa preocupação com a literalidade estrita também se aplica às tradições proféticas (hadîth) e Ibn Arabi elogia aqueles que, ao relatar as palavras do Profeta, tomam cuidado para não colocar um wa no lugar de um fa, mesmo que essas duas partículas sejam frequentemente intercambiáveis porque, quando são relatadas apenas “de acordo com o sentido” (alâ l-ma’nâ), não é o que o Profeta disse que está sendo comunicado, mas apenas o que foi entendido.
Essa atenção escrupulosa à forma da Palavra de Deus — pois essa forma, sendo divina, não é apenas a expressão mais adequada da Verdade: ela é a Verdade; ela não é apenas a portadora do significado, ela é o significado —, essa atenção governará a leitura que Ibn Arabi faz do Alcorão. Podemos, sem abuso, considerar que a obra de Shaykh al-Akbar, como é conhecida atualmente, é inteiramente um comentário sobre o Alcorão e que ilustra um método de interpretação que não busca o além da letra em outro lugar que não seja a própria letra. Assim como Deus é, ao mesmo tempo, al-zâhir wa l-bâtin, o Aparente e o Oculto, assim como a Realidade universal é semelhante à construção conhecida como tira de Moebius, que parece ter duas faces — externa e interna — e que, de fato, tem apenas uma, também é absurdo distinguir — e, a fortiori, opor — na Palavra de Deus, a letra e o espírito, o significante e o significado. Estamos muito longe de uma interpretação alegórica à maneira de, por exemplo, Fílon de Alexandria, e para nos convencermos disso basta compararmos o comentário de Fílon sobre o relato bíblico de Gênesis com o comentário feito por Shaykh al-Akbar — em breve veremos um exemplo disso — sobre versículos corânicos paralelos. Para Ibn Arabi, é o corpo nu de cada palavra no discurso divino que revela todos os seus significados.
Há um paradoxo óbvio aqui: a rigidez da letra parece impor uma leitura unívoca. Uma vez que a revelação tenha ocorrido, ela transmitiu uma mensagem que parece destinada apenas a ser repetida. Devemos concluir que toda hermenêutica é descartada de antemão? Isso seria esquecer que “se todas as árvores da terra se tornassem cálamos, se o mar se tornasse tinta — e se fosse aumentado com outros sete mares — a Palavra de Deus não se esgotaria” (Cor. 31:27).