Geoffrey Chaucer — Os Contos de Cantuária
Excertos da tradução de Paolo Vizioli
O CONTO DO PÁROCO (Excertos)
Segue-se aqui o Prólogo do Conto do Pároco
Nesse ponto, o Provedor terminara a sua história, e o sol se achava tão abaixo da linha meridional que, a meu ver, sua altitude devia ser de vinte e nove graus. Calculo que seriam quatro horas da tarde, pois minha sombra se estendia então por onze pés, pouco mais ou menos, o que daria, em relação à minha altura, a proporção correspondente a seis pés. E quando o signo de exaltação da lua, — ou seja, Libra, — começou sua ascensão, alcançamos a entrada de uma aldeia. Em vista disso, o Albergueiro, com aquele seu jeito próprio de conduzir a nossa alegre comitiva, assim falou: “Atenção, senhores! Agora só falta um conto para ser narrado. Minha intenção e meu decreto foram seguidos à risca, pois, se não me engano, já ouvimos pessoas de todas as categorias, de modo que o que determinei está praticamente cumprido. Que Deus abençoe ao que souber contar com graça a nossa última história. Senhor Padre,” chamou ele, “o senhor é Vigário ou Pároco? Vamos, diga a verdade! Mas, seja lá o que for, não vá estragar a nossa brincadeira, porque até agora ninguém se recusou a apresentar o seu relato. Abra a fivela, e mostre o que tem na mala! O senhor tem cara de quem sabe entretecer histórias muito interessantes. Pelos ossos do galo, brinde-nos logo com um belo conto!”
O Pároco imediatamente retrucou: “De mim é que não terão conto algum, pois São Paulo, na epístola a Timóteo, condena quem se afasta da verdade, contando fábulas ou outras bobagens sem sentido. Por que iria eu semear o joio com meu punho, se posso semear o trigo que me agrada? Eis porque, caso ainda me queiram ouvir, pretendo tratar da virtude e da moral, oferecendo-lhes prazerosamente, com a sua anuência e com espírito reverente a Cristo, um tipo de distração que a lei de Deus sanciona. Mas, vejam bem, sou um inglês do sul: não saberia, como os do norte, aliterar meus versos com aquele rum–ram–ruj; por outro lado, — e Deus é testemunha disso, — também não sou muito bom nas rimas. Por isso, se estiverem de acordo, não procurarei agradar aos sentidos com a música da poesia, preferindo oferecer-lhes um alegre relato em prosa, para desfecho e conclusão deste nosso entretenimento. E que Jesus, com sua graça, me dê inspiração para mostrar-lhes, nesta romaria, o caminho daquela outra peregrinação, perfeita e gloriosa, para a Jerusalém celestial. Com sua licença, darei início agora mesmo à minha fala, tão logo saiba o que pensam. Nada mais poderia dizer. De qualquer modo, esclareço que submeto à correção dos estudiosos a meditação que ora desejo apresentar, visto que não sigo os textos literalmente, contentando-me com o sentido geral. Esse o motivo porque me declaro aberto a correções.”
Diante disso, todos nós prontamente consentimos que falasse, porque assim não apenas lhe concedíamos o tempo e a atenção que esperava, mas também, pelo que tudo sugeria, concluiríamos a nossa diversão com algumas considerações morais. Rogamos, pois, ao nosso Albergueiro que lhe dissesse que era desejo de todos ouvi-lo.
O Albergueiro foi o nosso intermediário: “Senhor Padre,” disse ele, “boa sorte! Apresente-nos a sua meditação; mas apresse-se, pois o sol está se pondo. Seja fecundo, mas sucinto. E que Deus o ilumine com sua graça. Pode dizer o que quiser, que ouviremos com prazer.” Depois dessas palavras, disse ele o seguinte:
Explicit prohemium.
Aqui começa o Conto do Pároco.
Jer. 6º State super vias et videte et interrogate de viis antiquis, quae sit via bona; et ambulate in ea, et invenietis refrigerium animabus vestris &c.
§ 1. Nosso bondoso Deus do Céu, que não deseja que nenhum homem pereça, mas quer que todos nós possamos conhecê-lo e alcançar a vida bem-aventurada, que é eterna, admoesta-nos, através de Jeremias, com as seguintes palavras: Ponde-vos à margem dos caminhos e vede e interrogai pelas antigas veredas (isto é, pelas antigas doutrinas) qual é o bom caminho; e andai por esse caminho, e encontrareis o refrigério para vossas almas etc. Muitos são os caminhos espirituais que levam as almas a Nosso Senhor Jesus Cristo e ao reino da glória. Desses caminhos há um caminho mui nobre e recomendável, que não falha nunca ao homem ou à mulher que se extraviou do caminho certo para a Jerusalém celestial; e esse caminho se chama Penitência, a cujo respeito o homem deve alegremente ouvir e indagar de todo o seu coração, a fim de saber o que é a Penitência, e os modos das ações e dos trabalhos da Penitência, e quantas espécies há de Penitência, e o que convém ou toca à Penitência, e o que prejudica a Penitência.
§ 2. Santo Ambrósio diz que a Penitência é o pesar do homem pelo erro que cometeu, e não mais praticar nada que deva deplorar. E um Doutor da Igreja diz: “A Penitência é o lamento do homem que sofre por seu pecado — e se tortura pelo que fez de mal.” A Penitência, em certas circunstâncias, é o verdadeiro arrependimento daquele que impõe a si mesmo a tristeza e outras penas por causa de suas culpas. E, para que seja um verdadeiro penitente, ele primeiro lamenta os pecados que cometeu, e depois firmemente se decide em seu coração a confessar-se pela própria boca, e a oferecer reparo, e a nunca mais fazer algo que possa lamentar ou deplorar, e a prosseguir nas boas obras, caso contrário de nada serve o seu arrependimento. Pois, como diz Santo Isidoro, “é um galhofeiro e um mentiroso, e não um verdadeiro penitente, quem logo em seguida faz algo de que deve arrepender-se”. De nada serve chorar, se não se abandona o pecado. Todavia, muitos acreditam que sempre que o homem cai, não importa quantas vezes, pode ele erguer-se através da Penitência, se obtiver graça; mas isso certamente é muito duvidoso. Pois, como diz São Gregório, “dificilmente se ergue de seu pecado quem é culpado da culpa do mau hábito”. A Santa Igreja, portanto, considera mais segura a salvação do arrependido que renuncia ao pecado, abandonando o pecado antes que o pecado o abandone. Contudo, a Santa Igreja tem esperança também na salvação do que peca continuadamente e no fim se arrepende com sinceridade, graças à grande mercê de Nosso Senhor Jesus Cristo, que é capaz de dar o arrependimento. Escolhei, porém, o caminho seguro.
E, nesse estilo, prossegue o Pároco por quase uma centena de páginas, falando da Penitência e dos Sete Pecados mortais. Como se vê, esqueceu-se por completo da recomendação do Albergueiro para que fosse “fecundo, mas sucinto”. Por isso, tentaremos nós abreviá-lo, seguindo o excelente resumo que Nevill Coghill fez de seu misto de sermão e tratado moral.
Uma vez definida a Penitência, afirma o pregador que a raiz da árvore da Penitência é a contrição, os galhos e as folhas são a confissão, o fruto a satisfação, a semente a graça, e o calor vital dentro da semente o Amor de Deus.
A contrição é a tristeza do coração pelo pecado. O pecado pode ser venial ou mortal. O pecado venial consiste em amar a Cristo menos do que se deve; o pecado mortal consiste em amar a criatura mais que o Criador. O pecado venial pode levar ao pecado mortal. Há sete pecados mortais, ou capitais, o primeiro dos quais é o Orgulho.
O Orgulho se manifesta de várias formas: arrogância, impudência, hipocrisia jactanciosa, alegria pelo mal que se fez etc. Pode ser interior e exterior. O orgulho exterior é como o anúncio à porta da taverna, que mostra que há vinho na adega. Revela-se através da riqueza ou da pobreza dos trajes, ou pela própria postura do corpo, — por exemplo, quando “as nádegas se sobressaem como as partes traseiras de uma macaca ao luar”. Podemos mostrar o orgulho pecaminoso no séquito que escolhemos para nós, na hospitalidade ostensiva, na nossa força física, na própria cortesia. O remédio contra o Orgulho é a Humildade, ou o verdadeiro autoconhecimento.
A Inveja é a tristeza pela prosperidade dos outros e a alegria pela sua desgraça. É o pior dos pecados, pois se coloca contra todas as outras virtudes e todo bem, opondo-se frontalmente ao Espírito Santo, a fonte da Bondade. Os mexericos e os resmungos constituem o Padre-Nosso do Diabo. O remédio contra a Inveja é amar a Deus, o próximo e os inimigos.
A Ira é o desejo perverso de vingança. A ira contra o mal, entretanto, não é pecado, pois é cólera sem amargura. A ira perversa pode ser repentina ou premeditada; a pior é a última. A maldade estudada expulsa o Espírito Santo de nossa alma. É a fornalha do Demônio e, como tal, aquece o ódio, o homicídio, a traição, a mentira, a bajulação, o desprezo, a discórdia, as ameaças e as maldições. O remédio contra a Ira é a Paciência.
A Acídia trabalha de má vontade, apaticamente e sem alegria, sentindo-se sobrecarregada quando tem que fazer o bem. Afasta-nos da oração. É o pecado apodrecido da Preguiça, que nos leva ao desespero. O remédio é a Persistência.
A Avareza é o traiçoeiro desejo pelas coisas materiais, uma espécie de idolatria. Cada moeda no cofre é uma divindade, um ídolo. Estimula a extorsão da plebe por parte dos senhores, a fraude, a simonia, o jogo, o roubo, o falso-testemunho, o sacrilégio. O remédio é a Misericórdia, a “piedade no mais lato sentido”.
Seguem-se, finalmente, a Gula e a Luxúria, pela ordem, A Luxúria é um parente próximo da Gula. Apresenta muitas formas, e é o maior roubo que se pode praticar, visto que rouba o corpo e a alma. Os remédios são a Castidade e a Continência, além da moderação no comer e no beber. Quando o caldeirão ferve demais a melhor solução é tirá-lo do fogo.
Quanto à Gula, vejamos, na íntegra, o que diz o Pároco a seu respeito, já que se trata de um pecado que dele recebe um tratamento excepcionalmente breve:
Sequitur de Gula.
§ 70. Depois da Avareza vem a Gula, que também contraria o mandamento de Deus. A Gula é o desejo desmedido de comer e de beber, ou o ato de satisfazer o apetite desmedido e a desordenada vontade de comer e de beber. Esse pecado foi a ruína do mundo, como bem o demonstra o pecado de Adão e Eva. Também prestai atenção ao que diz São Paulo sobre a Gula: “Muitos”, diz São Paulo, “andam entre vós, dos quais eu repetidas vezes vos dizia e agora vos digo até chorando, que são inimigos da cruz de Cristo; o destino deles é a perdição, o deus deles é o ventre, e a glória deles está na sua infâmia, visto que só se preocupam com as coisas terrenas.” O viciado no pecado da Gula não resiste a nenhum pecado; escraviza-se a todos os vícios, pois se abriga e repousa na despensa do diabo. Há muitas espécies desse pecado. A primeira é a embriaguez, que é a horrível sepultura da razão humana; portanto, quando um homem fica bêbado, perde a razão, e isso é pecado mortal. Na verdade, porém, quando se trata de um homem não viciado na bebida, ainda que de repente venha a ser surpreendido embriagado, seja porque desconhece a força da bebida, seja porque tem a cabeça fraca, seja porque bebeu um pouco mais por estar muito cansado do trabalho, não comete ele pecado mortal, mas venial. A segunda espécie de Gula é quando a mente do homem fica perturbada pela embriaguez, que o priva da lucidez da inteligência. A terceira espécie de Gula é quando o homem devora o seu alimento, e não sabe comer de maneira correta. A quarta é quando, devido ao excesso de alimento, destemperam-se os humores do corpo. A quinta é o estupor provocado pela bebida, que leva o homem a esquecer, antes da manhã, o que fez na tarde ou na noite anterior.
§ 71. As espécies de Gula podem ser classificadas de outro modo, segundo São Gregório. A primeira é comer antes da hora de comer. A segunda é procurar comidas ou bebidas requintadas. A terceira é não respeitar a moderação. A quarta é o refinamento, com excessivos cuidados na feitura e no preparo dos alimentos. A quinta é comer com avidez. São esses os cinco dedos da mão do Demônio, com a qual arrasta os homens para o pecado.
Remedium contra peccatum Gulae.
§ 72. O remédio contra A Gula é a Abstinência, como diz Galeno. Mas isso não tem mérito algum quando o que se visa é apenas à saúde do corpo. Santo Agostinho quer que a abstinência seja praticada com paciência e com vistas à virtude. “A abstinência”, diz ele, “pouco vale se não for praticada com boa vontade, e não for comandada pela paciência e pela caridade, e não for inspirada pelo amor de Deus e pela esperança de se alcançar a bem-aventurança do Céu.”
§ 73. Os companheiros da Abstinência são a Temperança, que assegura o equilíbrio de todas as coisas; a Vergonha, que evita a desonestidade; o Contentamento, que não procura alimentos ricos e bebidas, nem se preocupa com o esmero excessivo na preparação da comida; o Comedimento, que refreia pelo uso da razão o apetite deslavado; a Sobriedade, que refreia os exageros no beber; e a Frugalidade, que refreia o ócio requintado dos que ficam longo tempo à mesa, sentados no macio, enquanto estimula alguns a voluntariamente tomarem suas refeições de pé e com menor conforto.
Terminada a apresentação dos Sete Pecados Capitais, o Pároco fala ainda da Confissão e da Satisfação.
A Confissão deve ser feita livremente e na mais sincera fé. A pessoa deve confessar os seus próprios pecados, dizendo sempre a verdade, com a própria boca, sem disfarçá-la com palavras ambíguas. Não deve ser um ato apressado nem frequente, mas conscientemente meditado.
A Satisfação, de modo geral, provém da caridade, da penitência, do jejum e dos sofrimentos corporais. Seu fruto é a eterna ventura no Céu.
E é com alusões à bem-aventurança, como veremos, que se encerra o sermão, ao qual se segue imediatamente a RETRATAÇÃO DE CHAUCER.
§ 103. Então os homens compreenderão qual é o fruto da penitência; e saberão, de acordo com a promessa de Jesus Cristo, que é a eterna felicidade no Céu, onde a alegria jamais é empanada pela dor e pelo sofrimento; onde se acabam todos os males desta vida terrena; onde se fica ao abrigo dos castigos do Inferno; onde está a ditosa companhia dos que se regozijam para sempre com as alegrias uns dos outros; onde o corpo do homem, que antes era imperfeito e escuro, se torna mais claro que o sol; onde o corpo, que antes era enfermiço, débil e fraco e mortal se torna imortal, e tão forte e tão sadio que nada mais pode feri-lo; onde não há nem fome, nem sede, nem frio, mas onde todas as almas resplendem à luz do perfeito conhecimento de Deus. Os homens podem comprar esse reino bem-aventurado com a pobreza espiritual, e a glória com a humildade, e a plenitude do júbilo com a fome e a sede, e o descanso com o trabalho, e a vida com a morte e a mortificação dos pecados.
Aqui o autor deste livro apresenta as suas despedidas.
§ 104. Agora peço a todos que ouvirem ou lerem este pequeno tratado que, se alguma coisa de seu agrado houver aqui, agradeçam por isso a Nosso Senhor Jesus Cristo, do qual procede todo talento e toda virtude. E, por outro lado, se houver algo que os desagrade, peço que o debitem às limitações de minha competência, e não à minha vontade, pois eu certamente teria me expressado melhor se tivesse sabido como fazê-lo. Pois diz o nosso Livro: “Tudo o que está escrito está escrito para a nossa edificação”; e foi isso o que pretendi. Solicito-vos, portanto, humildemente, pela graça de Deus, que oreis por mim, para que Cristo tenha piedade de mim e perdoe os meus erros, — e, de modo especial, as minhas traduções e composições referentes às vaidades do mundo, que ora rejeito em minha retratação, como o livro de Tróilo, o livro da Fama, o livro das Dezenove Damas, o Livro da Duquesa, o livro do Dia de São Valentim do Parlamento das Aves, os Contos de Cantuária, nas partes que soam pecaminosas, o Livro do Leão e muitas outras obras, que nem me vêm à lembrança, além de muitas canções e poemas sensuais. Que Cristo, em sua infinita mercê, me perdoe esses pecados. Mas pela tradução do De Consolatione de Boécio e por outros livros sobre as vidas dos santos, e homílias, e trabalhos de moral e devoção, agradeço a Nosso Senhor Jesus Cristo e à sua Mãe bendita e a todos os santos do Céu, rogando-lhes que de agora em diante, até o fim de minha vida, me enviem a graça de arrepender-me de minhas culpas e de preparar a salvação de minha alma, assegurando-me a dádiva da verdadeira Penitência, da Confissão e da Satisfação, para que eu viva neste mundo, — pela bondade generosa daquele que é rei dos reis e sacerdote sobre todos os sacerdotes, e que nos redimiu com o precioso sangue de seu coração, — de modo a poder figurar entre aqueles que, no dia do Juízo, deverão salvar-se. Qui cum Patre et Spiritu Sancto vivit et regnat Deus per omnia saecula. Amen.
Aqui termina o livro dos Contos de Cantuária, compilado por Geoffrey Chaucer, de cuja alma tenha piedade Jesus Cristo. Amém.