Coomaraswamy (Buda) – Mosteiros e Discípulos

Ananda Coomaraswamy — O Pensamento Vivo de Buda.

Entretanto, o príncipe-negociante Anatha Pindika se tornara zelador leigo; tinha comprado por um elevado preço o jardim Jetavana, em Sâvathi, e construirá nesse lugar um magnífico mosteiro onde convidou Buda a vir residir; o Mestre fez dele com efeito a sede principal de sua ordem até o fim de seus dias. Este Jetavana, aliás, é “um lugar que nunca foi abandonado por nenhum Buda” (Digha — Nikaya II, 74, A, IV, 16) e era natural que a “palhoça perfumada”, que ali habitava, se tornasse o protótipo dos templos budistas posteriores, onde ele mesmo é representado em imagem. Buda não residia ali sempre; era somente sua morada oficial, e é a este respeito que se formula pela primeira vez a questão da iconografia budista. Com efeito, nós vemos perguntar (no Kalinga Jataka) por qual espécie de símbolo ou de santuário (cetiya) pode-se representar convenientemente Buda, para lhe fazer oferendas em sua ausência. Ele responde que não pode ser representado convenientemente durante sua vida a não ser pela Árvore da Grande Sabedoria (maha-boddhi-rukkha), e depois de sua morte por suas relíquias corporais; ele condena o uso de imagens figurativas, isto é, antropomórficas, que ele diz serem imaginárias e sem fundamento. E, com efeito, constatamos que na arte budista dos primeiros tempos, Buda só é representado de modo não icônico pelos seus “traços” (dhatu) fáceis de reconhecer: seja por uma árvore de Bodhi, ou por uma “palhoça perfumada”, seja por uma “Roda da Lei” (dhamma-cakka), ou a marca de seus pés (pada-valanja) ou por um túmulo relicário (thupa); toas jamais por uma efígie (patima). De outra parte, quando pelo século I de nossa era, sem dúvida, se vai começar a representar Buda sob sua forma humana, deve-se notar que, no seu mais típico aspecto, sua imagem será menos feita à semelhança de um homem que modelada sobre o velho conceito do “Grande Cidadão” (maha-purisa), da “Grande Personalidade”, do Homem cósmico, e ela repete bem expressamente o tipo reconhecido da estátua de Yakkha: um Yakkha é um Agathos, Daimon, ou gênio tutelar. Isto está bem de acordo com o fato que o próprio Buda é “o Yakkha a quem se deve sacrifício”, com a doutrina da “pureza do Yakkha”, e com toda a tradição do culto pre-budista dos Yakkhas entre os Sakiyas, os Licahais e os Vajjias; não tinha Buda exortado os Vajjias a jamais negligenciar o culto dos Yakkhas? No tempo em que era Bodhisatta, ele fora tomado um dia como o gênio da árvore sob a qual se sentara; e da mesma maneira que Buda era representado em Jetavana e nos inícios da arte budista por “santuário-árvore” (rukkhfl cetiya), assim também se figuravam os Yakkhas, em cujos “templos” Buda gostava de se abrigar durante suas viagens. Estas considerações recebem todo o seu valor se nos lembramos que “o Yaksha” (yakkha) dos Vedas e dos Upanixades designava primitivamente não apenas Brahma enquanto princípio vital da Árvore da Vida, mas ainda o Eu imortal que habita nossa humana “Cidade de Brahma”, (brahma-pura) à qual o Homem, enquanto cidadão, deve seu nome de Purusha; enfim que os epítetos de “ó Desperto” (buddho) e “O Que Se Tornou Brahma” (brahma-bhudo) são sinônimos bem comprovados daquele que também se chama o “Grande Cidadão” (mahapurisa) e que, ao menos num texto, explicitamente, — e muitas vezes implicitamente — é identificado ao Eu universal (Digha — Nikaya III, 84. e passim).

Entretanto o número dos discípulos tinha crescido consideravelmente: eram diversos grupos de monges-mendicantes (Bhikhu) ou de Exilados (Prabbajita) que daí por diante em lugar de errarem continuamente, residiam geralmente nos conventos oferecidos à Comunidade por ricos zeladores leigos. Desde a época em que Buda era vivo se tinham formulado muitas questões de disciplina, e as decisões do Mestre foram os fundamentos da regra (vinaya) da vida do monge-mendicante no que concerne à habitação, às roupas, à alimentação, à conduta, à manutenção, à admissão e à expulsão. Tomada em seu conjunto, a comunidade contava com relativamente poucos Mestres graduados (asekho) e um bem maior número de discípulos noviços (sekko). É uma distinção que é preciso notar particularmente no caso do grande discípulo Ananda, que era primo-irmão de Buda, que se tornou monge-mendicante em Kapilavatthu desde o segundo ano de predica: ao cabo de vinte anos foi ele que Buda escolheu para torná-lo seu servidor pessoal e seu confidente, seu mensageiro e seu representante: entretanto ele não pôde obter um “grau religioso” a não ser muito tempo depois da morte do Mestre.

É a Ananda que as mulheres devem o fato de ser recebidas na ordem. Diz-se que Maha Pajapati, a segunda esposa de Suddhodana, que tinha educado o Bodhisata “depois da morte prematura de Maha Maya, pediu para ser admitida na ordem, e que ela ficou muito desgostosa por receber uma recusa. Ela cortou sua cabeleira, revestiu a túnica alaranjada dos monges, e acompanhada de outras mulheres Sakyas fez uma nova visita a Buda; todas estas mulheres, exaustas pela caminhada e cobertas de poeira, permaneceram muito tempo em pé à porta de sua residência na cidade de Vesali. Comovido por vê-las assim, Ananda defendeu-lhes a causa junto ao Mestre, que reiterou sua recusa por três vezes. Então Ananda abordou a questão por outro lado. “As mulheres” — perguntou — “que abandonaram a vida do lar para viver conforme a doutrina e a disciplina que ensina Aquele que encontrou a Verdade, são capazes de realizar os frutos da “entrada na corrente”, de se tornar “Aquele que voltará ainda uma vez” ou “Aquele que não voltará mais” ou de ser Arahant? Buda não podia responder negativamente; consentiu na fundação de uma ordem de bhikkus paralela à ordem dos bhikkhus. Mas acrescentou que se as mulheres não tivessem sido admitidas na Ordem e na prática do Caminhar com Brahma, a Verdadeira Lei (saddhamma) seria mantida mil anos, enquanto que daí por diante ela só duraria quinhentos anos. No seu octagésimo ano Buda caiu doente; apesar de seu rápido restabelecimento, compreendeu que seu fim estava próximo. Disse a Ananda: “Estou velho agora, a viagem chegou a seu fim, atingi a idade de oitenta anos. Da mesma maneira que uma carroça usada não pode mais andar a não ser com grande reforço de correias, parece-me, Ananda, que o corpo d’Aquele que encontrou a Verdade só pode prosseguir ainda com a ajuda de medicamentos”. Ananda desejava saber que instruções Buda deixava aos monges-mendicantes: Buda respondeu que se um deles pensava que o sangha (a Comunidade) dependia dele, era a ela que cabia dar suas instruções. — “porque deixarei eu instruções concernentes à comunidade? Aquele que encontrou a Verdade pregou a Lei plenamente, sem nada dissimular”; nada mais resta que praticar, contemplar, e propagar a Verdade por piedade do mundo, e para o maior bem dos homens e dos deuses. Os mendicantes não deviam contar com qualquer apoio exterior, deviam “tomar o Eu (atta) por refúgio, a Lei Eterna como refúgio”… e é por isso que “eu vos deixo, eu parto, tendo encontrado refúgio no Eu” (Digha — Nikaya n, 120).

Ananda Coomaraswamy, Buda