AFETIVIDADE — CORAÇÃO E AFETIVIDADE
René Guénon: CORAÇÃO IRRADIANTE E CORAÇÃO EM CHAMAS
Em certos casos, a figuração do coração dispõe de apenas um desses dois aspectos: a luz é naturalmente representada por uma irradiação de tipo comum, isto é, formada apenas de raios retilíneos, enquanto que o calor é representado, de hábito, por chamas que saem do coração. Podemos além disso observar que a irradiação, mesmo quando os dois aspectos estão reunidos, parece sugerir, de modo geral, uma reconhecida preponderância ao aspecto luminoso. Essa interpretação é confirmada pelo fato de que as representações do coração irradiante, com ou sem distinção das duas espécies de raios, são as mais antigas, datando na maioria dos casos de épocas em que a inteligência era ainda tradicionalmente referida ao coração, enquanto que as representações do coração ardente se difundiram sobretudo com as ideias modernas que reduzem o coração a corresponder apenas ao sentimento.[[É notável a esse respeito que, em particular no simbolismo cristão, as mais antigas figurações conhecidas do Sagrado Coração pertencem todas ao tipo do coração irradiante, enquanto que naqueles que não remontam além do século XVII, encontra-se o coração ardente de uma forma constante e quase que exclusiva. Aí está um exemplo muito significativo da influência exercida pelas concepções modernas até no domínio religioso.]] E sabemos que, de fato, quase se chegou ao ponto de se dar apenas este último significado ao coração, e de se esquecer inteiramente sua relação com a inteligência. A origem desse desvio pode sem dúvida ser atribuída em grande parte ao racionalismo, na medida em que este pretende identificar pura e simplesmente a inteligência à razão; porém o coração não está de modo algum relacionado à razão, mas sim ao intelecto transcendente, que no entanto, precisamente, é ignorado e mesmo negado pelo racionalismo. Na verdade, porém, a partir do momento em que o coração passa a ser considerado como o centro do ser, todas as modalidades desse ser podem num certo sentido ser referidas, ao menos indiretamente, ao próprio coração, inclusive o sentimento ou o que os psicólogos denominam “afetividade”; isso torna possível ainda observar as relações hierárquicas que decorrem do fato de apenas o intelecto ser verdadeiramente “central” e das demais modalidades só terem um caráter mais ou menos “periférico”. No entanto, na medida em que a intuição intelectual que reside no coração passa a ser desconhecida[[Essa intuição intelectual é exatamente simbolizada pelo “olho do coração”.]] e tem a sua função “iluminadora”[[Cf. o que dissemos em outra parte sobre o sentido racionalista dado aos “luminares” do século XVIII, em especial na Alemanha, e sobre a significação correspondente da denominação Iluminados da Baviera (Aperçus sur l’Initiation, cap. XII).]] usurpada pelo cérebro, nada mais resta ao coração que a possibilidade de ser considerado como a sede da afetividade.[[É assim que Blaise Pascal, contemporâneo dos inícios do racionalismo propriamente dito, já entende “coração” no sentido exclusivo de “sentimento”.]] Além disso, o mundo moderno deveria ver nascer ainda, como uma espécie de contrapartida do racionalismo, o que se poderia denominar de sentimentalismo, ou seja, a tendência de ver no sentimento o que há de mais profundo e mais elevado no ser, e de afirmar sua supremacia sobre a inteligência. E é evidente que tal coisa, como tudo que na realidade constitui a exaltação do “infra-racional”, só pôde produzir-se porque a inteligência tinha sido previamente reduzida à razão pura e simples.
Agora, se deixarmos de lado o desvio moderno que acabamos de indicar e quisermos, dentro de seus legítimos limites, estabelecer uma certa relação do coração com a afetividade, deveremos considerar tal relação como resultado direto do papel do coração como “centro vital” e sede do “calor vivificante”, ficando assim a vida e a afetividade coisas muito próximas entre si, ou mesmo inteiramente conexas, enquanto a relação com a inteligência é por certo de uma ordem muito diferente. Quanto ao mais, essa estreita relação entre a vida e a afetividade está expressa de maneira clara pelo próprio simbolismo, visto serem ambas, representadas sob aspecto de calor.[[Trata-se aqui, naturalmente, da vida orgânica em sua acepção mais literal, e não do sentido superior no qual a vida, ao contrário, está em relação com a luz, tal como se vê em especial no início do Evangelho de São João (cf. Aperçus sur l’Initiation, cap. XLVII).]] E é em virtude dessa mesma assimilação que, embora de uma forma muito pouco consciente, fala-se habitualmente na linguagem comum do calor do sentimento ou da afeição.[[Entre os modernos, considera-se também com grande frequência que o coração ardente representa o amor, não só o amor no sentido religioso, mas também no sentido puramente humano. Era essa a representação corrente, sobretudo no século XVIII.]] É preciso ainda notar a esse respeito que, quando o fogo se polariza em seus dois aspectos complementares, a luz e o calor, estes, em sua manifestação, encontram-se por assim dizer em razão inversa entre si. Sabemos, mesmo do ponto de vista da física, que uma chama é de fato tanto mais quente quanto menos ilumina. Do mesmo modo, o sentimento só é na verdade um calor sem luz.[[É por isso que os antigos representavam o amor como sendo cego.]] Também no homem pode ser encontrada uma luz sem calor, como a razão, que é uma luz refletida, fria como a luz lunar que a simboliza. Na ordem dos princípios, ao contrário, os dois aspectos, como todos os complementares, estão juntos e unidos indissoluvelmente, pois são constitutivos de uma mesma natureza essencial. É o que acontece também com o que diz respeito à inteligência pura, que pertence exatamente a essa ordem dos princípios, o que vem confirmar mais uma vez, como indicamos antes, que a irradiação simbólica sob sua dupla forma pode ser-lhe integralmente vinculada. O fogo que reside no centro do ser é luz e calor ao mesmo tempo. Mas, se quisermos traduzir esses dois termos respectivamente por inteligência e amor, ainda que sejam no fundo dois aspectos inseparáveis de uma única coisa, será necessário, para que essa tradução se torne aceitável e legítima, acrescentar que o amor em questão difere do sentimento ao qual se dá o mesmo nome, na mesma proporção em que a inteligência pura difere da razão.
Pode-se compreender facilmente, com efeito, que certos termos tomados da afetividade sejam, como tantos outros, passíveis de serem transpostos analogicamente para uma ordem superior, pois todas as coisas têm de fato, além do seu sentido imediato e literal, um valor de símbolos em relação a realidades mais profundas. E é evidente que isso também ocorre, em particular, todas as vezes em que se trata do amor nas doutrinas tradicionais. Entre os próprios místicos, apesar de certas confusões inevitáveis, a linguagem afetiva aparece sobretudo como um modo de expressão simbólica, pois, seja qual for entre eles a parte incontestável do sentimento no sentido usual dessa palavra, é no entanto inadmissível, apesar do que pretendem os psicólogos modernos, que não exista aí mais que emoções e afeições puramente humanas atribuídas, enquanto tais, a um objeto supra-humano. Entretanto, a transposição torna-se ainda muito mais evidente quando se constata que as aplicações tradicionais da ideia de amor não se limitam ao domínio exotérico e sobretudo religioso, mas estendem-se também ao domínio esotérico e iniciático. É o que ocorre em particular com os inúmeros ramos ou escolas do esoterismo islâmico e também com certas doutrinas da Idade Média ocidental, em especial nas tradições próprias das Ordens da Cavalaria,[[Sabe-se que a base principal dessas tradições era o Evangelho de São João: “Deus e Amor”, o que seguramente só pode ser compreendido pela transposição de que falamos; e o grito de guerra dos Templários era: “Viva Deus Santo Amor.”]] bem como na doutrina iniciática, aliás conexa, que encontra sua expressão em Dante e nos “Fiéis de Amor”. Podemos acrescentar que a distinção entre a inteligência e o amor, assim entendida, tem sua correspondência na tradição hindu com a distinção entre Jnâna-mârga (caminho do conhecimento) e Bhakti-mârga (caminho da devoção). A referência que acabamos de fazer às Ordens da Cavalaria indica, além do mais, que o caminho do amor é em particular mais apropriado aos chátrias, enquanto o caminho da inteligência ou do conhecimento é naturalmente aquele que convém sobretudo aos brâmanes. Mas, em suma, trata-se de uma diferença que apenas se aplica à forma de considerar o Princípio, de acordo com a própria diferença das naturezas individuais, mas que não poderia de forma alguma afetar a indivisível unidade do próprio Princípio.