AVICENA — RELATO DE HAYY IBN YAQZAN
Segundo Corbin, este Relato é uma iniciação ao Oriente: a significação é anunciada ao adepto por uma mensagem deste Oriente mesmo, a qual mostra a direção, descreve de antemão as etapas da difícil viagem que aí conduz, enuncia as condições desta, e finalmente conclui pelo convite: «Se queres, siga-me». A dramaturgia mental do Relato é portanto ainda uma antecipação e uma preparação; o evento psíquico da ascensão celeste interiormente vivida será relembrada e re-citada no «Relato do Pássaro». No termo do primeiro relato da trilogia de Avicena, já podemos saber o que é preciso compreender por «filosofia oriental». O Oriente sendo o mundo das Formas ou das «Ideias» oposto ao «Ocidente» onde declinam aquelas dentre elas que devem um certo tempo «informar» a Matéria, a filosofia oriental será o conhecimento das Ideias em si mesmas e por si mesmas, uma filosofia do mundo do Anjo em seus três graus: espiritual, celeste e terrestre. Se se quer entrever o programa aviceniano da filosofia oriental, a primeira fonte é este Relato onde é enunciado claramente e sem reserva a visão do Oriente, e que por esta razão deve se juntar aos contextos que fazem pressentir as referências dadas à «sabedoria oriental» nas glosas sobre a Teologia dita de Aristóteles.
Resumo do Relato
Excertos de AVICENA: A VIAGEM DA ALMA, de Rosalie Helena de Souza Pereira
§ 1. Prólogo. — Anúncio da revelação de um conhecimento oculto
O narrador do relato, Avicena, cede à insistência de seus “irmãos” e aceita expor seu encontro com Hayy ibn Yaqzan, individualização do intelecto agente na interpretação de A.-M. Goichon, ou do anjo na teoria de Henry Corbin. Já de início, o prólogo indica tratar-se de uma narrativa iniciática, acessível somente àqueles que estão preparados para receber a mensagem velada e compreender seu significado oculto.
§§ 2, 3, 4. — Encontro com o soter
Encontro com o Sábio Hayy ibn Yaqzan, apresentação e saudações de ambas as partes: enquanto o narrador passeia com seus companheiros nos arredores de seu país, depara-se com o Sábio, alguém já avançado em idade que, no entanto, conserva o viço da juventude. O narrador sente um enorme desejo de com ele conversar e, ao se aproximar, recebe dele uma afetuosa saudação. O Sábio se apresenta como alguém que possui as chaves do conhecimento; seu nome é Vivente, filho do Vigiante e vem da Morada Sacrossanta.
§§5,6,7, 8. — Revelação da natureza da alma humana: antropologia
A conversa entre eles prossegue até o Sábio mencionar a ciência da fisiognomonia, necessária para que tenha início o aprendizado, pois será com esta ciência que o homem poderá conhecer e separar os bons dos maus companheiros. Estes últimos representam as principais paixões humanas que impedem o homem de alcançar o conhecimento: a irascibilidade, a concupiscência e a imaginação. Para poder realizar a jornada iniciática em direção ao Uno, sua origem, antes de empreender a viagem, a alma terá de dominar suas paixões e vícios.
§ 9. — Interlúdio: o iniciado se apresenta preparado para receber a mensagem oculta
O narrador manifesta seu desejo de empreender a viagem guiado pelo Sábio, o qual lhe responde ser impossível percorrê-la em vida. Contudo, o homem poderá empreender partes do itinerário que muitas vezes será interrompido, pois a companhia de suas paixões e vícios desviam-no constantemente de seu caminho iniciático.
§§ 10, 11, 12. — Preparação para receber a revelação: aquisição do conhecimento
Inicialmente, é preciso saber que há três regiões: o Ocidente, o Oriente e uma região situada entre essas duas. Esta região intermediária é o mundo terrestre onde habitam os homens; o Ocidente é a figura para representar a matéria, lugar da escuridão, porque é lá onde a luz se põe; o Oriente representa o lugar dos inteligíveis, pois é lá que surge a luz. As regiões para além do Ocidente e do Oriente, difíceis de serem atingidas, representam os princípios da matéria e dos inteligíveis, respectivamente. Para atingir tais regiões é preciso adquirir o conhecimento da lógica, ciência que possibilita ultrapassar os obstáculos com os quais vai se defrontar a alma em sua viagem ao Oriente, pátria dos inteligíveis.
§§ 13,14,15, 16. — Revelação da ordem do universo: cosmologia
O sistema cosmológico passa a ser descrito em ordem ascendente. Do Ocidente da mais pura matéria, a alma passa ao mundo vegetal e animal, chega à região que anuncia o mundo celeste e finalmente atinge a região dos astros. Segue-se a descrição do sistema planetário segundo Ptolomeu. A viagem através das esferas significa libertar-se dos vícios e paixões que cada astro simboliza nos arquétipos astrológicos. Até aqui a descrição se limita ao mundo físico, terreno e celeste. Na divisão das principais ciências, o mundo material do Ocidente pode ser apreendido com o conhecimento da física.
§§ 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23. — Revelação do destino da alma: escatologia
Após os sete climas, correspondentes aos sete planetas conhecidos na época de Avicena, surgem dois climas que já pertencem ao mundo dos inteligíveis. A narrativa passa então a descrever o mundo eterno, isto é, o mundo dos inteligíveis e Deus, finalidade da viagem da alma em seu retorno à pátria original. O mundo dos inteligíveis é apreendido pela metafísica, e a passagem do mundo físico para o mundo eterno representa um espaço intermediário que pode ser atribuído à matemática, ciência que apreende os elementos do mundo sensível com noções abstratas. A metafísica é a ciência que estuda as essências, as formas e os inteligíveis. Com o conhecimento da metafísica, a alma ingressa no mundo eterno.
§§ 24, 25. — Epílogo: missão de Hayy ibn Yaqzan.
O Sábio afirma que somente alguns poucos atingem o mundo dos inteligíveis. Esses poucos eleitos são preenchidos pelo conhecimento, única possibilidade para que se realize o regresso da alma à sua origem, isto é, a Deus. O Sábio confessa que já se aproxima de Deus ao descrever a região eterna, isto é, os inteligíveis. Termina sua mensagem com o convite ao narrador para acompanhá-lo nessa viagem em busca do conhecimento.