A princípio falamos de «filosofia islâmica» e não, como o uso prevaleceu por muito tempo desde a Idade Média, de «filosofia árabe». O profeta do Islã era, certamente, um árabe da Arábia; o árabe literal é a língua da Revelação corânica, a língua litúrgica da Oração, a língua e o instrumento conceitual que foram utilizados por árabes como por não árabes, para edificar uma das literaturas mais abundantes do mundo, aquela onde se exprime a cultura islâmica. No entanto, o sentido das designações étnicas evolui com os séculos. Em nossos dias o termo «árabe» refere, no uso corrente como no uso oficial, a um conceito étnico, nacional e político preciso, com o qual não coincidem nem o conceito religioso «Islã» nem os limites de seu universo. Os povos árabes ou arabizados não são senão uma fração minoritária na totalidade do mundo islâmico. A ecumenicidade do conceito religioso «Islã» não pode ser nem transferido nem restrito aos limites de um conceito étnico ou nacional, profano. É uma evidência que é clara para quem quer que tenha vivido em um país do Islã não árabe.
Certamente, pôde-se e se poderia fazer valer que a designação de «filosofia árabe» é para ser entendida simplesmente como uma filosofia escrita em língua árabe, quer dizer neste árabe literal que, em nossos dias ainda, é a ligação litúrgica tanto entre os membros não árabes da Comunidade islâmica como entre as frações da nação árabe, particularizada cada uma por seu árabe dialectal. Infelizmente, esta definição «linguística» é inadequada e não atinge seu propósito. Se se a aceita, não se saberia mais onde classificar pensadores iranianos tais como o filósofo ismaeliano Nasir-e Khosraw (século XI) ou Afzaloddin Kashani (século XII), filho de Nasiroddin Tusi, do qual todas as obras são integralmente escritas em língua persa, sem falar de todos aqueles que, desde Avicena e Sohravardi até Mir Damad (século XVII), Hadi Sabzavari (século XIX) e nossos contemporâneos, escreveram seja em persa, seja em árabe literal. A língua persa não deixou jamais de desempenhar, ela também, seu papel de língua de cultura (até de «língua litúrgica» nos ismaelianos do Pamir, por exemplo). Da mesma maneira, se é verdade que certos tratados de Descartes, Spinoza, Kant, Hegel, são escritos em latim, seus autores não são por conta disto filósofos «latinos» ou «romanos».
Para designar o mundo de pensamento que se vai tratar nas páginas que seguem, precisa-se portanto de uma designação que seja bastante ampla para salvaguardar a ecumenicidade espiritual do conceito «Islã», e que, ao mesmo tempo, mantenha o conceito «árabe» na altura do horizonte profético no qual brilha sua aparição na história com a Revelação corânica. Sem prejulgar opiniões ou da «ortodoxia» pondo em questão a qualidade «muçulmana» de tal ou tal de nossos filósofos, falaremos de «filosofia islâmica», como da filosofia cuja expansão e as modalidades estão ligadas essencialmente ao fato religioso e espiritual Islã, e que está aí para atestar que o Islã não encontra sua expressão nem adequada nem decisiva, como se disse abusivamente, somente no direito canônico. (excertos traduzidos do Prefácio)
Este livro apresenta uma excelente panorâmica da “filosofia” islâmica, porém com um certo viés de perspectiva, privilegiando a tradição xiita, que Corbin considera como o “esoterismo” islâmico. Estaremos apresentando seu índice de matérias, acompanhado de excertos traduzidos.