Corbin (HL) – Luz Verde

Excertos traduzidos por Antonio Carneiro

Luzes que sobem e baixam: o dhikr desce ao poço do coração e simultaneamente faz sair o místico do poço das trevas. Na simultaneidade destes momentos concêntricos anuncia-se a a aparição e o crescimento do organismo sutil de luz. As descrições se complicam e se entremisturam para resolver-se em Najm Kobrâ na visio smaragdina que estes movimentos preludiam. “Nosso método é o método da alquimia, afirma o sheikh; trata-se de extrair o organismo sutil de luz das montanhas sob as quais jaz prisioneiro”(§ 12). “Pode ocorrer que te visualizes a ti-mesmo como se estivesse no fundo de um poço, e como se o poço se animasse com um movimento descendente de cima para baixo. Na realidade, és tu quem está subindo”(ibid.) Este ascenso (recorde-se da visão de Hermes em Sohravardî, seu ascenso nas ameias do Trono) é a saída progressiva das montanhas que, como se viu anteriormente (supra IV, 2), eram as quatro naturezas elementais, constitutivas do organismo físico. Os estados interiores concomitantes com esta saída se traduzem nas visualizações de desertos, inclusive “de cidades, de países, de casas, que descendo do alto até ti e que depois desaparecem por debaixo de ti, como se visse um dique que se funde na margem do mar e desaparece nele” (§ 12).

Esta correspondência é precisamente o que proporciona ao místico um meio de controle decisivo sobre a realidade das visões, uma garantia contra as ilusões, pois rege o equilíbrio de uma balança rigorosa. “Ocorre que contemplas com teus olhos aquilo do que não tinhas todavia mais que um conhecimento teórico por meio da mente. Quando visualizas um mar em que estás fundido mas que estás atravessando, sabe que se trata do aniquilamento das exigências supérfluas que se originam no elemento água. Se o mar é límpido e tem nele sóis emergidos ou luzes ou um resplendor, sabe que é o mar da gnose mística. Quando visualizas uma chuva que desce, sabe que é um orvalho que cái dos lugares da Misericórdia divina, para verificar as terras dos corações adormecidos na morte. Quando visualizas um resplendor que está em princípio fundido e do qual logo te liberas, sabe que é o aniquilamento do supérfluo que se origina no elemento fogo. Por fim, quando visualizas ante ti um espaço grande e amplo, uma imensidão abrindo-se nas lonjuras, enquanto que por cima de ti tem um ar límpido e puro e no horizonte percebes cores, verde, vermelho, amarelo, azul, sabe que isto anuncia a passagem pelas alturas desse ar até o campo dessas cores. Agora bem, essas cores são as dos estados espirituais interiormente experimentados. A cor verde é o signo da vida do coração; a cor do fogo ardente e puro é o signo da vitalidade da energia espiritual, o que quer dizer capacidade de realização. Se o fogo carece de brilho, põe de manifesto no místico um estado de fadiga e de adversidade subsequente ao combate com o eu inferior e com o demônio. O azul é a cor desse eu inferior. O amarelo assinala um relaxamento. Tudo isto são realidades super-sensíveis que dialogam com aquele que as experimenta na dupla linguagem do sentimento interior (dhawq) e a percepção visionária. São duas testemunhas complementárias, pois, experimentas interiormente em ti-mesmo o que visualizas por tua visão interior o que precisamente experimentas em ti-mesmo”(§ 13).

O sheikh formula assim a lei da balança que permite controlar essas visões de luzes coloridas, e que é tanto mais necessária quanto se trata não de percepções ópticas, mas sim de fenômenos percebidos pelo órgão da visão interior; a balança permite discriminá-las e distingui-las das “alucinações”. A discriminação se estabelece com efeito na medida em que se verifica o estado interior realmente experimentado, e em que este estado interiormente experimentado está em correspondência com aquele que procuraria a percepção exterior de uma ou outra cor. Nesta medida se trata não de uma ilusão mas sim de uma visualização real e de um sinal, quer dizer, da coloração de objetos e acontecimentos reais, cuja realidade, se entende, não é física mas sim super-sensível, psico-espiritual. Por este motivo estes fotismos coloridos são em pleno sentido da palavra testemunhas, testemunhas do que tu és do que vale tua visão, e prefiguram a visão da “testemunha celestial” pessoal. A importância da cor verde (a cor do polo) ressalta em todo este contexto, posto que é a cor do coração e da vitalidade do coração (§14); e agora então, o coração é o homólogo do Trono, o polo que é o umbral do mais além. Assim reconhecemos aqui mais um traço já refletido no relato sohravardiano do exílio.

“A cor verde é a última cor que persiste. Desta cor emanam raios que brilham com destelhos resplandescentes. Esta cor verde pode ser absolutamente pura, pois pode ocorrer que seu brilho se deva à um retorno das trevas da natureza (§15). Assim como a montanha de Qâf (a montanha psico-cósmica, supra III,1) toma integralmente a coloração da Rocha de esmeralda que é seu cume (o polo, o norte cósmico), assim também “o coração é um órgão sutil que absorve o reflexo das coisas e as realidades super-sensíveis que fazem círculo ao redor dele. A cor do objeto se reproduz no órgão sutil (latîfa) frente ao que está colocado, o mesmo que as formas se refletem nos espelhos ou em uma água perfeitamente pura… O coração é uma luz na profundidade do poço da natureza, como a luz de José no poço em que havia sido lançado” (§16).

Eis aqui, pois, como forma as peripécias da saída do poço. A primeira vez que esse poço se revela à ti, te revela uma profundidade à que nenhuma profundidade percebida fisicamente possa se comparar. Ainda que no estado de vigília estivesse em condições de familiarizar-se com ele, quando o visualizas em estado de “união” com os sentidos ( ou de “ausência”, quer dizer no super-sensível, ghayba), te sentes enternecido por um espanto tal que crês a ponto de entregar a alma. E logo, na abertura começa a brilhar a extraordinária luz verde. Desde esse momento, se mostram a ti maravilhas que já não poderás esquecer: as de Malakût (o mundo das animae caelestes, o esotérico dos céus visíveis) as de Jabarût (o mundo dos Querubins, dos Nomes Divinos). Experimentas os sentimentos mais contraditórios: exultação, pavor, atração. Ao fim da via mística, verás o poço por debaixo de ti. Então, o poço inteiro se metamorfoseia em poço de luz ou de cor verde. “Trevas ao começo, pois era a morada dos demônios, ei-lo aí agora radiante de luz verde, pois se converteu em um lugar onde descem os anjos e a compaixão divina”(§ 17). Najm Kobrâ dá testemunho aqui das angelofanias que foram dispensadas: a saída do poço sob a guia de quatro anjos que o rodeiam: a descida do sakîna (a Shekhina), grupo de anjos que descem ao coração: ou bem a visão de um único anjo que o leva em direção ao alto como foi levado o Profeta (§§ 19-21).

Et ce sont tous les Cieux spirituels, les Cieux intérieurs de l’âme, les sept plans de l’être ayant leurs homologues dans l’homme de lumière, qui s’irisent dans l’arc-en-ciel de la visio smaragdina. « Sache que l’exister n’est pas limité à un acte unique. Il n’y a point d’acte d’être tel que l’on ne découvre au-dessus de lui un acte d’être encore plus déterminé et plus beau que le précédent, jusqu’à ce que l’on aboutisse à l’Etre divin. Pour chaque acte d’être, sur le parcours de la voie mystique, il y a un puits. Les catégories de l’être sont limitées à sept ; c’est ce à quoi fait allusion le nombre des Terres et des Cieux [Sur les sept Cieux, cf. Qorân 67: 3 et 78 : 12 ; sur les sept Terres, Safinat Bihar al-Anwâr, 1, 661. Sur l’amplification de ce thème dans l’école shaykhie. cf. notre livre Terre céleste, p. 133, n. 86.]. Lors donc que tu as fait l’ascension des sept puits dans les différentes catégories de l’exister, voici que se montre à toi le Ciel de la condition suzeraine (robûbîya) et de la puissance. Son atmosphère est une lumière verte dont la viridité est celle d’une lumière vitale, parcourue d’ondes éternellement en mouvement les unes vers les autres. Il y a dans cette couleur verte une telle intensité que les esprits humains n’ont pas la force de la supporter, ce qui ne les empèche pas de s’éprendre pour elle d’un amour mystique. Et à la surface de ce Ciel se montrent des points d’un rouge plus intense que le feu, le rubis ou la cornaline, et qui apparaissent rangés en groupes de cinq. Le mystique éprouve à leur vue nostalgie et ardent désir; il aspire à se conjoindre avec eux (§ 18). »

Henry Corbin (1903-1978)