Corbin Teologia

Henry Corbin — TEOLOGIA
Excertos da tradução em português de Dimas David Santos Silva, do livro de Steven Wasserstrom, Religion after Religion

Ainda estou esperando por um anjo apocalíptico com uma chave para este abismo. J. G. Hamann, citado por Martin Heidegger

É preciso estudar todas as obras publicadas de Corbin para entender que este grande “islamicista” era um tanto diferente de qualquer outro. Ele escreveu o que veio a chamar de ‘filosofia profética’, uma espécie de ciência esotérica complementada pelo aparato aceitável de notas de rodapé. Influências sobre este elaborado conceito, contudo, ainda não foram pesquisadas totalmente, embora muitas delas já sejam bem conhecidas. O esoterismo de Corbin mesclava filosofia medieval, ocultismo, História das Religiões, teologia luterana, ideologia xiita, em uma brilhante mistura muito bem polida, absolutamente autêntica e impossível de ser reproduzida. E minha convicção que ele pode ter sido o esoterista mais sofisticado e estudado do século. Embora haja alguns trabalhos sérios escritos sobre o seu pensamento na França, nenhuma obra de peso foi ainda apresentada na Inglaterra.
Corbin Als Apocalyptiker
A fixação de Corbin no Apocalipse foi, no mínimo, devida a Schleiermacher e Barth, Otto e Heidegger, Jung e Swedenborg, bem como aos gigantes do pensamento xiita e sufi. Ele traduziu Heidegger e Barth antes de ter traduzido Suhrawardi. Ele só começou suas extensas visitas anuais ao Irã depois de completar quarenta e dois anos de idade. Parece que as bases de seu sistema se encontram na sua transição, quando jovem, do catolicismo francês de final do século para um luteranismo alemão idiossincrático, radicalizado na era de Weimar. A segunda maior transição em sua vida, para um ardente iranófilo, completou-se por volta do final dos anos trinta. Naquela época ele era um parisiense cosmopolita com trinta e tantos anos que escrevia, traduzia e fazia palestras sobre Barth, Kierkegaard, Hamann e Heidegger.

O sistema operacional, por assim dizer, ao redor do qual ele construiu sua teosofia arcana e erudita, foi, então, principalmente alemão em sua origem. Até um certo ponto ele tornou clara esta origem em suas declarações autobiográficas. No entanto, suas implicações ainda devem ser aprofundadas. Uma delas, parece-me, é que Nietzsche é uma figura mais importante do que Maomé para o entendimento da teoria do Islã apresentada por Corbin. E para se notar o cunho gnóstico revolucionário que Corbin deu em sua proclamação bem baseada em Nietzsche de que ‘Deus está morto’ em sua palestra dada em Eranos no ano de 1954:

Não é nosso intuito aqui apreender em termos de pura fenomenologia as consequências, a parte Dei, do homoousianismo e da encarnação. Deus deixou de ser eterno no céu, mas a consciência compreendeu totalmente o evento acontecido e Nietzsche gritou: Deus está morto, morreu de piedade pelos homens.

Em uma palestra subsequente, ele viria a falar outra vez da morte de Deus como já tendo ocorrido:

Esta posição e função (como Princípio e Causa supremos) foram atribuídas ao Deus pessoal por todos os magistérios político-religiosos para que este Deus, a quem atribuíam supremo poder, pudesse, por sua vez, garantir a delegação deste poder aos mesmos. No final, chega um dia em que este Deus das religiões monoteístas não gnósticas é declarado morto.

Perguntamo-nos o que faria disto a grande preponderância de muçulmanos…

Uma chave para esta leitura do Islã, em sua grande parte não islâmica, pode talvez ser encontrada em sua influência recebida de Martin Heidegger. A evocação feita por Karl Löwith de ter tido Heidegger como mestre — ele foi realmente mestre de Löwith — leva a paralelos informativos em relação a Corbin em quase todos os aspectos.

Criado como jesuíta, ele se tornou protestante pela indignação, um dogmático da Escolástica através da educação e um pragmatista existencialista pela experiência, um teólogo na base da tradição e um ateísta enquanto pesquisador; com a máscara de historiador de sua tradição, na verdade ele foi um renegado contra a mesma. Existencialista como Kierkegaard, embora possuísse a vontade de sistematizar de um Hegel, tão dialético no método quanto unilateral no conteúdo, fazendo afirmações apodíticas com o espírito da negação, silente na reação aos outros mas singularmente curioso, radical, em primeiro lugar, em relação aquilo que é superior e, segundo, inclinado ao compromisso em tudo — este era o efeito múltiplo que o homem exercia sobre seus alunos, os quais, apesar de tudo, ficavam cativados, pois ele ultrapassava de longe todos os outros professores da universidade na intensidade da vontade filosófica.

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Pós-História Decisionista
Na atmosfera excessivamente carregada dos anos trinta, Corbin trouxe o ‘fim da metafísica’ de Heidegger para a discussão com a ‘teologia da crise’, de Barth, para criar uma teologia apocalíptica pós-cristã. Em 1933, Corbin publicou ‘La théologie dialectique et l’histoire’. A profunda influência da obra Comentário sobre os romanos, de Barth, demonstra aqui o seu impacto, na tradução de Corbin: ‘Le jugement de Dieu est la fin de l’Histoire, et non le commencement d’une seconde histoire’. Em meados dos anos trinta, Corbin era íntimo de Alexandre Kojève, traduzindo juntos um livro na época em que o filósofo russo emigrado estava concebendo sua influente teoria do fim da história. Intimamente relacionado com este tema da pós-história estava o decisionismo, que proporcionou um impulso que poderia empurrar o homem pós-histórico para fora da horrível modernidade, para dentro de outro mundo, o mítico. Corbin já estava ouvindo os tons sonoros do decisionismo nos anos trinta. Em sua introdução aos hinos maniqueístas publicados em 1937, por exemplo, ele exprimiu, na verdade para si mesmo, a posição gnóstica:

La cosmologie n’est vraie que dans la ré-invention de la foi, dans l’expérience individuelle authentique. C’est pourquoi la sotériologie, le salut, l’histoire finale du monde, n’est pas un chapitre succédant à sa constitution, à sa création primordiale. La création est en même temps l’eschatologie, c’est par cette décision primitive que le monde est une histoire. (A cosmologia não é verdadeira a não ser na reinvenção da , na experiência individual autêntica. E por isso que a soteriologia, a saúde, a história final do mundo, não é um capítulo que se segue à sua constituição, à sua criação primordial. A criação é, ao mesmo tempo, a escatologia. E por esta decisão primitiva que o mundo é uma história.)

Em 1935, Denis de Rougemont fundou, junto com Corbin, o jornal teológico Hic et Nunc.

… pequena revista de pensamento religioso que reclamava de Kierkegaard e sua dupla descendência — existencial e nietzscheniana segundo Heidegger, dialética e calvinista segundo Karl Barth.

Resumindo a posição de Corbin naquela época, de Rougemont cita o mesmo para dizer que par ‘existence’ nous ne pouvions entendre que décision concrete dans l’instant, hic et nunc” (por ‘existência’ só podemos entender decisão concreta, no instante, aqui e agora). Mircea Eliade, é interessante observar, reiterou tal tema na ‘conclusão’ de Padrões da religião comparada. ‘A resistência é expressa mais claramente quando o homem é colocado frente a frente com uma demanda total pelo sagrado, quando é convocado a tomar a suprema decisão.
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Teologia Cristã das Religiões: Xiismo como Escatologia Protestante
Quando se analisa a vasta obra de Corbin em seu conjunto, torna-se claro que ele não estava, em última instância, interessado no Islã. Não estava interessado no Islã nos termos que eram conhecidos pela maioria dos muçulmanos, ou até mesmo pela maioria dos islamicistas. Das 445 páginas de seu livro História da Filosofia Islâmica, cerca de 14 são dedicadas ao Corão, 20 ao Sunni Kalam, e outras 20 ao ‘pensamento Sunni’. Menos de um oitavo do conjunto, portanto, é dedicado ao que, estatisticamente, se constitui no fulcro do pensamento religioso islâmico. Um trabalho de espantoso conhecimento, que se propõe a corrigir desequilíbrios, a História da Filosofia Islâmica parece, pelo contrário, fazer severas compensações. Estas proporções são, para não dizer mais, ainda mais extremadas em sua disparidade se considerarmos o trabalho de Corbin como um todo.

Sua defesa, pelo menos na medida em que ele se defendeu, é que o xiismo faz demandas urgentes e totais. A racionalidade convencional, que pode classificar os fatos de maneira bem diferente, é simplesmente irrelevante em tal circunstância. Neste caso, segundo Corbin, o xiismo é, por excelência, uma escatologia: ‘Parece-me que a metafísica de Molla Sadra corresponde estritamente à urgência xiita, que mantém o homem em um estado de tensão e de esforço, visto que sua perspectiva é essencialmente escatológica e orientada em direção à Parousia da ‘espera pelo imame’.

Deve-se dizer, contudo, que ele correlacionou esta escatologia xiita com uma certa escatologia esotérica ocidental:

A metafísica do xiismo é essencialmente, como aquela de Berdiaev, uma metafísica escatológica. Uma e outra se juntam para nos convencer de que não é tentando rivalizar com as ideologias sociopolíticas oriundas da secularização do cristianismo, que este virá a conceber e a formular uma teologia cristã das religiões.

Em resumo, a teoria de Corbin sobre o xiismo foi idêntica à sua ‘teologia cristã das religiões’. Esta foi uma teologia pós-denominacional, independente, que se derramou nas fontes xiitas com um gênio para representação simpática. A cristologia de Corbin, na verdade, tornou-se indistinta das cristologias xiita e sufi. No final da sua vida, como ele escreveu explicitamente, se não com fervor, sobre aquilo que ele chamou de harmonia abraâmica, isto ficou claro para seus leitores esta indistinguível habilidade sempre foi o ponto. Isso parece condensado por sua citação de uma estrofe do poeta persa Hafiz, ‘que eu tomaria alegremente como meu mote pessoal’: ‘Deixe que a inspiração do Espírito Santo respire mais uma vez. Outros, por sua vez, farão o que Cristo fez’. Ele não deixou nenhuma dúvida, portanto, de que estava praticando uma ‘filosofia comparativa’, presumindo uma filosofia visionária que transcendia as limitações convencionais. O visionário conseguiu uma unidade transcendente de abraâmica. E, no final, este feito ficou carregado explicitamente de importância escatológica:

O aprofundamento comparativo nos permitiria entender aquilo que têm em comum as religiões do Livro, em sua espera de um Pentecostes por vir.

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“A Teologia da História das Religiões”: a Época de Eranos e o Fim da História
Corbin pode ter sido, junto com Adolf Portmann, o ilustre biólogo suíço, o mais entusiástico impulsionador de Eranos em sua ‘era de ouro’, que vai de 1950 a 1975. Em ‘A época de Eranos’, um ensaio que ele publicou várias vezes, Corbin articulou talvez o manifesto mais enfático e comovente dos Eranos-Tagungen, como eram chamados pelos participantes. O final da história pode parecer de outra forma aqui, mas esse ensaio talvez o seu tratamento mais importante de uma teoria esotérica do tempo mergulha profundamente no problema da duração.

O fim real da história para Corbin foi encontrado na ressimbolização, o processo pelo qual indivíduos se afastaram da multidão e se tornaram verdadeiramente eles mesmos. No mundo dos símbolos não há nem antes nem depois. Esta simultaneidade abençoada, somente compreensível para aqueles que aprendem a interpretar os sinais, significa que aquele que acredita deve ser uma espécie de hermeneuta. E ‘interpretando’ os sinais, explicando não os fatos materiais mas os caminhos do ser, que se revelam os seres. A hermenêutica como ciência do indivíduo está em oposição à dialética histórica como alienação do indivíduo. Além de ser a vibrante expressão de um guerreiro frio e comprometido, na ofensiva contra a ‘dialética histórica’, Corbin revela aqui a base filosófica de seu ataque ao historicismo:

O passado e o futuro assim se tornam signos, porque um signo é percebido precisamente no presente. O passado deve ser ‘colocado no presente’ para ser percebido como ‘representando um signo’. Em resumo, o total contraste está aqui. Com signos, hierofanias e teofanias, não há história a fazer. Pelo contrário, o sujeito que é ao mesmo tempo o órgão e o lugar da história, é a individualidade psicológica concreta. A única ‘causalidade histórica’ são as relações da vontade entre sujeitos que interagem.

Entretanto, foi em sua palestra de 1965 em Eranos que Corbin apresentou talvez sua declaração mais explícita do que pode ser chamado de escatologia de Eranos:

Podemos falar da ação configurativa do Espírito, da forma como uma tarefa a ser cumprida pelo Espírito (que é nosso tema em Eranos), com pleno significado apenas se tivermos espaço em que possamos projetar a totalidade desta forma. Tal espaço foi conhecido pelas religiões e pelas teologias tradicionais como a dimensão escatológica, em que a fonte do arco é encontrada — uma fonte que nunca será nossa enquanto ficarmos em busca da ‘prova’ científica.

É interessante observar que Corbin, mais de uma vez, atribuiu a Eliade a sua compreensão da ‘teologia da História das Religiões’. Nas palestras de Eranos, uma parte do vocabulário técnico de Eliade, especialmente ‘história cíclica’ e ‘teofania’, começou a ser empregada por Corbin. Em IMAGINAÇÃO CRIATIVA NO SUFISMO DE IBN ARABI, o capítulo sobre teofania cita Eliade quatro vezes. E, ein sua última palestra em Eranos (bem mais do que 100 páginas e 294 notas de rodapé), A imagem do Templo em confronto com as normas seculares, a dicotomia entre sagrado e profano de Eliade é posicionada notadamente próxima àquilo que Corbin chamou de ‘a chave para minha hermenêutica’:

A história profana vê a humanidade como se ela tivesse criado a si mesma; a História é a criação que o homem contempla como sendo dele mesmo e da qual ele é o resultado. A história sagrada, ou hiero-história, se eleva novamente a eventos que são anteriores à existência do mundo, anteriores à destruição do Templo, porque é por este templo que fui criado e sua Imagem existe dentro de mim. Esta é a chave da minha hermenêutica, a norma sagrada que determina a ascensão de um mundo para outro.

O caráter intrinsecamente conflituoso desta missão não deve ser minimizado. A ‘norma sagrada’ é inteligível somente através da identificação da ‘história profana’, de modo que se possa ser liberado da sua escravidão para ascender de mundo a mundo. Isto é possível, por outro lado, somente na medida em que se possa dar nome ao Adversário, o Regente deste mundo. Para Corbin, um de seus inúmeros nomes era Ahriman.

Henry Corbin (1903-1978)