Se o Islã buscasse simplesmente pregar que há só um Deus e não dois ou mais, não teria nenhuma capacidade de persuasão. Na realidade, é caracterizado pelo ardor persuasivo, o que se origina do fato de, no âmago, ele pregar a realidade do Absoluto e a dependência de tudo do Absoluto. O Islã é a religião do Absoluto como o Cristianismo é a religião do amor e do milagre; mas amor e milagre pertencem também ao Absoluto e não exprimem nada senão uma atitude que Ele assume em relação a nós.
Se buscarmos a origem das coisas, somos obrigados a observar — deixando de lado qualquer questão dogmática — que a razão básica para a mutua falta de entendimento entre cristãos e muçulmanos reside no seguinte: o cristão vê sempre diante de si a sua vontade — que é como se fosse ele próprio. E assim confrontado com um espaço vocacional indeterminado, em que pode lançar-se, pondo em ação sua fé e seu heroísmo. Em contraste, o sistema islâmico de prescrições “exteriores”, estabelecidas claramente, lhe parece a expressão de uma mediocridade pronta a fazer todo o tipo de concessões e incapaz de qualquer vôo elevado. A virtude muçulmana lhe parece ser, em teoria — ele ignora sua prática — algo artificial e vazio. O ponto de vista do muçulmano é muito diferente: ele vê diante de si — diante de sua inteligência que escolhe o único — não um espaço para a vontade, o que lhe pareceria uma tentação a um aventurar-se individualista, mas sim um sistema de canais divinamente predispostos para o equilíbrio de sua vida volitiva. E este equilíbrio, longe de ser um fim em si mesmo, como supõe o cristão, que está habituado a um idealismo da vontade mais ou menos exclusivo, é, ao contrário, em última análise, apenas uma base para escapar das incertezas e turbulências do ego, numa contemplação liberatória e pacificadora do Imutável. Resumindo: se a atitude de equilíbrio, que o Islã busca e efetua, parece aos olhos cristãos uma mediocridade calculada, incapaz de atingir o supranatural, o idealismo sacrificial do Cristianismo está sujeito a ser mal interpretado pelo muçulmano, como um individualismo arrogante do dom divino da inteligência. A uma objeção, baseada no fato de que o muçulmano mediano não se preocupa com contemplação, pode-se responder que tampouco o cristão mediano se preocupa com sacrifício. Nas profundezas de sua alma, todo o cristão alimenta um impulso para o sacrifício, que provavelmente nunca será realizado; da mesma forma que todo o muçulmano tem, em razão de sua fé, uma predisposição para a contemplação, que provavelmente nunca despontará realmente em seu coração. Além dessa, outra objeção poderia ser feita por alguns, que diria que os misticismos cristão e muçulmano, longe de serem de tipos opostos, apresentam, ao contrário, analogias tão impressionantes, que nos sentimos compelidos a concluir que deve ter havido apropriações unilaterais ou recíprocas. A resposta neste caso é que, se supusermos que o ponto de partida dos sufis foi o mesmo dos místicos cristãos, surge a questão de por que motivo permaneceram muçulmanos, e como foram capazes de suportar serem muçulmanos; na verdade, eles foram santos não apesar de sua religião, mas através dela. Longe de serem cristãos disfarçados, homens como Al-Hallaj e Ibn ‘Arabi, ao contrário, não fizeram mais que levar as possibilidades do Islã ao auge, como seus grandes precursores já tinham feito. Apesar de algumas aparências, como a ausência do monaquismo como instituição social, o Islã, que louva a pobreza, o jejum, a solidão e o silêncio, abrange todas as premissas de um ascetismo contemplativo.
Quando um cristão ouve a palavra “verdade”, pensa imediatamente no fato de que “o Verbo se fez carne”, enquanto que quando um muçulmano ouve essa palavra pensa em primeiro lugar que “não há divindade senão a única Divindade” e o interpretará literal ou metafisicamente, de acordo com seu nível ou conhecimento. O Cristianismo fundamenta-se num “evento” e o Islã, no “ser”, na “natureza das coisas”. Aquilo que aparece no Cristianismo como fato único, a Revelação, é visto no Islã como a manifestação rítmica de um princípio. Se, para os cristãos, a verdade é que Cristo permitiu que fosse crucificado, para os muçulmanos — para quem a verdade é que só há um Deus — a crucificação de Cristo é, por sua própria natureza, algo que não pode ser “a Verdade”, e a rejeição muçulmana da cruz é uma forma de expressá-lo. O anti-historicismo muçulmano — por analogia poderia ser chamado “platônico” ou “gnóstico” — culmina nessa rejeição que é, na origem, bem externa e, para alguns1 , até mesmo duvidosa quanto a sua intenção.
Também a Queda, e não só a Encarnação, é um evento único, considerado capaz de determinar o “ser” do homem de uma maneira total. Para o Islã a queda de Adão é uma manifestação necessária do mal, não implicando entretanto que o mal possa determinar a verdadeira natureza do homem, já que o homem não pode perder seu teomorfismo. No Cristianismo a “ação” divina parece de certa forma ter prioridade sobre o “ser” divino, no sentido de que a ação se reflete na própria definição de Deus. Essa forma de ver as coisas pode parecer superficial, mas há aqui uma distinção muito sutil que não pode ser negligenciada, quando se compara as duas teologias em questão.
A atitude de reserva adotada pelo Islã, não propriamente em relação aos milagres, mas em relação à hipótese axiomática de milagres judaico-cristã, e, particularmente, cristã, é explicada pela predominância do pólo da “inteligência” sobre o da “existência”. A visão islâmica baseia-se no que é espiritualmente evidente, no sentimento do Absoluto, de acordo com a própria natureza do homem, que neste caso é visto como uma inteligência teomórfica e não como uma vontade à espera de ser seduzida, por assim dizer, por milagres ou tentações. Se o Islã, a última a aparecer na série de grandes Revelações, não se fundamenta em milagres — ainda que admitindo-os, necessariamente, porque de outra forma não seria uma religião -, é também porque o Anticristo virá “com toda a sorte de portentos, milagres e prodígios mentirosos”2 . Já a certeza espiritual (que está no pólo oposto do “revolver” produzido pelos milagres), certeza que o Islã oferece na forma de uma fé unitária penetrante e um senso agudo do Absoluto, é um elemento a que o demônio não tem acesso. Ele pode imitar um milagre, mas não o que é intelectualmente evidente. Pode imitar um fenômeno, mas não o Espírito Santo, exceto no caso daqueles que querem ser enganados e, que, de qualquer modo, não têm senso nem da verdade nem do sagrado.
Já foi feita alusão ao caráter não-histórico da perspectiva islâmica. Esse caráter explica não só sua intenção de ser simplesmente a repetição de uma realidade atemporal ou uma fase num ritmo anônimo, e, portanto, uma “reforma” — no sentido estritamente ortodoxo e tradicional do termo, e mesmo num sentido reinterpretado, porque uma Revelação autêntica é inevitavelmente espontânea e vem somente de Deus, seja qual for a aparência — mas explica também algumas ideias islâmicas, como a de criação contínua. Se Deus não fosse Criador a cada momento, o mundo acabaria; como Deus é sempre Criador, é ele que intervém em cada fenômeno e não há causas secundárias, nem princípios intermediários, nem leis naturais que possam existir entre Deus e o fato cósmico, excetuando-se somente o caso do homem que, sendo o representante, o imam, de Deus na Terra, possui os dons miraculosos da inteligência e da liberdade. Mas, em última análise, nem mesmo esses dons escapam da determinação divina; o homem escolhe livremente o que Deus deseja; escolhe “livremente” porque Deus assim o quer, porque não pode deixar de manifestar, dentro da ordem contingente, Sua liberdade absoluta. Logo, nossa liberdade é real, mas de uma realidade que é ilusória, como a relatividade em que é produzida e que é um reflexo d’Aquele que é.
A diferença fundamental entre o Cristianismo e o Islã, afinal de contas, fica patente no que, respectivamente, cristãos e muçulmanos abominam. O que é detestável para um cristão é, em primeiro lugar, a rejeição da divindade de Cristo e da Igreja, e, em seguida, uma moral diferente da sua, para não dizer uma moral negligente. Quanto ao muçulmano, odeia a rejeição de Allah e do Islã, porque a Unidade Suprema e Suas incondicionalidade e transcendência parecem-lhe deslumbrantemente evidentes e majestosas, e porque para ele o Islã é a Lei, é a Vontade Divina e a emanação lógica, de modo equilibrado, dessa Unidade. A Vontade Divina — e aí, acima de tudo, a diferença fica clara — não coincide necessariamente com o que envolve sacrifício, pode mesmo em alguns casos combinar o útil e o agradável; e portanto o muçulmano dirá: “Deus quer o que é bom”, e não: “Deus quer o que é doloroso”. É lógico que o cristão é da mesma opinião que o muçulmano, mas sua sensibilidade e sua imaginação levam-no mais para a segunda fórmula. Na atmosfera do Islã a Vontade Divina tem em vista em primeiro lugar não o sacrifício e o sofrimento como provas de amor, mas a aplicação da inteligência teomórfica (min Ruhi, “do Meu Espírito”), ela mesmo determinada pelo Imutável e, portanto, abrangendo nosso ser; no caso contrário há “hipocrisia” (nifaq), já que saber é ser. Na realidade, a aparente “facilidade” do Islã tende para um equilíbrio, como já foi dito, cuja razão suficiente é, em última análise, um esforço “vertical”, contemplação, gnose. Em certo sentido, o que precisamos fazer é o oposto do que faz Deus; noutro sentido, devemos agir como Ele: porque, de um lado, somos como Deus, já que existimos, e de outro somos opostos a Ele, já que, existindo, d’Ele estamos separados. Por exemplo, Deus é Amor, logo devemos amar, porque somos como Ele; mas, por outro lado, Ele julga e Se vinga, e isso não podemos fazer, porque somos diferentes d’Ele. Mas, como essas posições são sempre aproximadas, a moral pode e deve variar; há sempre lugar para um amor culpável e uma vingança justa. É tudo uma questão de ênfase e delimitação. A escolha depende de uma perspectiva que não é arbitraria (ou não seria uma perspectiva), mas conforme à natureza das coisas ou a um aspecto particular dessa natureza.
Todas as posições descritas acima estão fundadas nos dogmas, ou, num sentido mais profundo, nas perspectivas metafísicas que eles expressam, o que quer dizer, num certo “ponto de vista”, quanto ao sujeito e, num certo “aspecto”, quanto ao objeto. Ao perceber que se baseia na divindade de um fenômeno terreno — não é em si mesmo que Cristo é terreno, mas na medida em que se desloca no tempo e no espaço -, o Cristianismo vê-se forçado, em consequência, a introduzir relatividade no Absoluto, ou melhor, a considerar o Absoluto num nível relativo, o da Trindade3 . Como um “relativo” particular é considerado como absoluto, o Absoluto deve ter algo de relativo, e como a Encarnação é um ato da Divina Misericórdia, ou do Amor Divino, Deus precisa, a princípio, ser concebido nesse aspecto, e o homem, no aspecto correspondente de vontade e afeto, assim como o caminho espiritual deve ser uma realidade de amor. A ênfase cristã na vontade é o complemento da concepção cristã do Absoluto, que é, por sua vez, como que determinada pela “historicidade” de Deus, se é possível usar essa expressão.
Analogamente, ao perceber que se fundamenta na incondicionalidade de Deus, o Islã é forçado consequentemente — já que por sua forma é um dogmatismo semita4 — a excluir tudo que é terreno do Absoluto e precisa, assim, ao menos ao nível das palavras, negar a divindade de Cristo. Não está obrigado a negar que de maneira secundária o relativo está em Deus, porque necessariamente admite os atributos divinos — o contrário seria negar qualquer característica diretamente divina fora do único Princípio. Os sufis são os primeiros a reconhecer que nada pode se encontrar fora da Realidade Suprema, porque dizer que a Unidade exclui tudo equivale a dizer que, de um outro ponto de vista — o da realidade do mundo -, inclui tudo; mas essa verdade não está suscetível de formulação dogmática, ainda que logicamente incluída no la ilaha ill Allah.
Quando o Corão afirma que o Messias não é Deus, quer dizer que não é um “deus” diferente de Deus, ou que não é Deus que o Messias terreno5 ; e quando rejeita o dogma da Trindade quer dizer que não há tríade em “Deus como tal”, ou seja, no Absoluto, que está além de todas as distinções. Finalmente, quando o Corão parece negar a morte de Cristo, pode ser entendido como referindo-se a que, na realidade, Jesus venceu a morte, enquanto os judeus acreditam que mataram o Cristo em sua própria essência6 ; aqui a verdade do símbolo prevalece sobre a verdade do fato, no sentido de que uma negação espiritual toma a forma de uma negação material7 . De outro ângulo, com essa negação ou aparente negação, o Islã elimina a via de Cristo no que lhe diz respeito, e é lógico que devesse fazê-lo, já que sua própria via é diferente e não precisa reivindicar os meios de graça próprios ao Cristianismo.
No plano da verdade total, que inclui todos os pontos de vista, aspectos e modos possíveis, qualquer recurso simplesmente à razão é evidentemente inútil: consequentemente, é vão argumentar contra o dogma de uma religião “alheia” que um erro apontado pela razão não possa se tornar uma verdade em outro nível, porque seria esquecer que a razão opera de maneira indireta, ou por reflexões, e que seus axiomas são inadequados quando penetra no terreno do puro intelecto. A razão é, por sua natureza, formal e formalista em suas operações, procede por “coagulações”, por alternativas e exclusões — ou, pode-se dizer — por verdades parciais. Não é, como o intelecto puro, luz “fluida” e sem forma. É verdade que a razão deriva sua implacabilidade ou validade geral do intelecto, mas ela só toca essências tirando conclusões, não por visão direta. Ela é indispensável para a formulação verbal, mas não envolve conhecimento imediato.
No Cristianismo a linha de demarcação entre o relativo e o Absoluto passa através de Cristo; no Islã ela separa o mundo de Deus, ou mesmo — no caso do esoterismo — os atributos divinos da Essência, uma diferença explicada pelo fato de que o exoterismo tem sempre que partir do relativo enquanto o esoterismo parte do Absoluto, ao qual dá um sentido mais estrito, até mesmo o mais estrito possível. No sufismo também é dito que os atributos divinos são afirmados enquanto tais só em relação ao mundo, e que em si mesmo eles são indistintos e inefáveis; logo, não se pode dizer de Deus que Ele é, num sentido absoluto, “misericordioso” ou “vingador”, deixando de lado por um momento que ele seja misericordioso “antes” de ser vingador. Quanto aos atributos de santidade e sabedoria da Essência, só são efetivados enquanto distinções em relação a nossa mente distintiva, e assim o são sem por isso perderem nada de sua realidade infinita em seu próprio ser, muito pelo contrário.
Dizer que a perspectiva islâmica é possível equivale a dizer que é necessária e, consequentemente, não pode deixar de existir; é exigida por seus receptáculos humanos providenciais. As diferentes perspectivas, enquanto tais, não têm qualidade absoluta. A verdade é Una; aos olhos de Deus suas diferenças são relativas e os valores de cada uma podem sempre ser encontrados nas outras, de algum modo. Não existe somente o Cristianismo de “calor”, de amor emocional, de atividade sacrificial, mas, enquadrado nisso, há também um Cristianismo de “luz”, de gnose, de pura contemplação, de “paz”. E, da mesma forma, o Islã que é “seco” — seja legalística, seja metafisicamente — envolve um Islã que é “úmido”8 , um Islã preocupado com a beleza, com o amor e com o sacrifício. Este imperativo tem que ser assim devido à unidade não só da Verdade, mas também do gênero humano, a qual é relativa, certamente, já que as diferenças existem, mas ainda assim é suficientemente real para permitir, ou impor, a reciprocidade ou ubiquidade espiritual em questão.
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