Daumal (RDBh:45-47) – Sabor – Ressonância

Sabor. Um estado — como o amor etc. — manifestado pela representação de suas causas ocasionais, de seus efeitos perceptíveis e de suas aparências transitórias, e que constitui o modo de ser fundamental de uma obra poética, assume a qualidade de Sabor na apreensão dos seres conscientes.

Surgindo com o Princípio Essencial, sem partes, brilhando com sua própria evidência, feito de Alegria e Pensamento unidos, puro de todo contato com outra percepção, irmã gêmea da gustação do Sagrado, vivendo com o sopro da Admiração sobrenatural, tal é esse Sabor que todos aqueles que têm uma medida para julgar degustam como a própria Causa de si mesmo, indivisivelmente.

Aqui chamamos de “Princípio Essencial” um espírito intocado pelos outros dois princípios de Inércia (“Obscuridade”) e Dispersão (“Fumaça”). Há certa lei interna que nos leva a virar a face para longe dos objetos de conhecimento externo; esse é o Princípio Essencial. O surgir do Princípio Essencial é o seu aparecimento quando supera o par Inércia-Dispersão; esse surgir é provocado pelo encontro com os objetos sobrenaturais que são os da poesia. A “admiração” é um tipo de expansão do pensamento, que também significa a palavra Maravilhamento.

Que, em um Sabor tal qual a Patética, etc., não seja produzido senão alegria, a consciência que deles têm as pessoas inteligentes é o único critério. Se nelas houvesse tristeza, ninguém levantaria a boca para elas. É verdade que as coisas que produzem tristeza e alegria, quando têm seu ponto de associação neste mundo, dão origem, neste mundo, à tristeza e à alegria de natureza mundana; mas quando essas causas assumem a qualidade de representações que transcendem este mundo, ao terem seu ponto de associação na Poesia, então, de todas essas causas, somente a alegria é produzida. E se a poesia faz com que as lágrimas sejam derramadas, então ela liquefaz a alma.

A gustação não ocorre sem a imaginação dos estados representados…

E foi dito por dharmadatta: “Os assistentes dotados de imaginação podem saborear o Sabor, mas aqueles que são desprovidos de imaginação são, no teatro, como vigas, paredes e pedras”.

Pela representação das causas, efeitos, etc., de um estado de ser, se efetua uma operação chamada Comunhão; pela virtude deste ato, o homem que tem uma medida de julgamento se torna inseparavelmente idêntico ao que vê representado, ao herói de um drama, por exemplo, mesmo que esse herói seja representado pulando sobre o oceano… Da mesma forma, é por meio desta comunhão que o amor e outros estados são experimentados.

O Sabor não reside no herói representado, nem no ator que o representa; (…) pois o ator, ao mesmo tempo em que, compreendendo o significado do poema, mostra em sua própria pessoa a forma essencial do herói, coloca-se ao mesmo tempo na situação de espectador.

O Sabor não é uma entidade preexistente que pode ser revelada… da mesma forma que a existência de um jarro é revelada ao se acender uma lâmpada sobre ele… Dizer: “nós provamos o Sabor” é como dizer “nós cozinhamos o pilaf [arroz a grega]” (o que, a rigor, é impróprio, porque o pilaf não existe antes de ser cozido, nem o Sabor antes de ser provado). Ele não é passado, nem futuro, nem perene. Na verdade, não é do mundo; aqueles que têm um ser interior sabem disso. Só é conhecido comendo-o — sem se separar dele — como pensam os sábios.

(Os Oito Sabores. Na poesia, o Sabor assume oito aspectos fundamentais, designados pelos nomes dos sentimentos ou modos de ser por meio dos quais são expressos; mas o Sabor é a Ideia desses estados. São eles: o Erótico, o Cômico, o Patético, o Furioso, o Heroico, o Terrível, o Repugnante e o Maravilhoso. A esses acrescentamos o Acalmado e o Familiar).

Ressonância ou sugestão. [… Uma palavra tem três “poderes”, que podem conferir três ordens de significado a uma declaração verbal: o significado literal, o significado derivado (que surge do significado literal que foi frustrado) e o significado sugerido (que é o “excedente” de significado que pode permanecer quando as duas primeiras funções tiverem atuado, e que é necessário para a poesia). Assim, na expressão “uma estação de pastores no Ganges”, “Ganges” denota uma certa massa de água em movimento. Mas as outras palavras se opõem a esse significado literal, o que indica o significado secundário de “margem” do Ganges. Por fim, o que resta do significado negado de “Ganges” é a sugestão de uma certa atmosfera fresca, e é com essas sugestões ou “ressonâncias” que o poeta vai brincar]. A poesia é de dois tipos: a poesia da ressonância e aquela em que a sugestão é subordinada (no sentido literal)…. Quando o significado sugerido prevalece sobre o significado literal no ato de provocar o “Maravilhamento”, então dizemos que há Ressonância, ou seja, que algo soa em seu interior, e essa é a poesia mais elevada.

Virtudes ou funções. As Funções (ou Virtudes) estão para o Sabor integrado (do poema) como o heroísmo, etc. (estão para a pessoa). Elas são de três tipos: Suavidade, Energia, Evidência. É uma alegria composta pela liquefação do pensamento que é chamada de Suavidade; ela se manifesta acima de tudo, em ordem crescente de intensidade, com o Amor em união, o Patético, o Amor em separação, o Acalmado. A energia é uma chama expansiva do pensamento; ela se manifesta acima de tudo, em ordem crescente de intensidade, com o Heroico, o Terrível e o Furioso. O que penetra no pensamento com a velocidade do fogo na madeira seca é a Evidência, presente em todos os Sabores.

 

René Daumal (1908-1944)