“Para que uma montanha possa representar o papel de Monte Análogo, eu concluía, é necessário que seu pico seja inacessível, mas a base acessível aos seres humanos, tais como a natureza os fez. Ela deve ser única e deve existir geograficamente. A porta do invisível deve ser visível.” [DAUMAL, René. O Monte Análogo. Romance de Aventuras Alpinas, Não-Euclidianas e Simbolicamente Autênticas. Tr. Gian Bruno Grosso. São Paulo: Editora Horus, 2007]
Gian Bruno Grosso
“Senhor, li vosso artigo sobre o Monte Análogo. Eu acreditava ser o único, até agora, a estar convencido de sua existência. Hoje, somos dois, amanhã seremos dez, mais talvez, e poderemos tentar a expedição. E necessário que entremos em contato o mais rapidamente possível.Telefone-me assim que possível num dos números abaixo. Eu vos aguardo.
Pierre Sogol1, passagem dos Patriarcas, 37 — Paris”.
(Seguiam cinco ou seis números de telefone onde eu poderia encontrá-lo em diferentes horários do dia.)
Eu já tinha quase esquecido o artigo ao qual ele se referia, e que tinha aparecido cerca de três meses antes, no número de maio da Revista dos Fósseis.
Lisonjeado por esse gesto de interesse por parte de um leitor desconhecido, eu experimentava ao mesmo tempo um certo mal-estar em ver como estava sendo levada a sério, quase tragicamente, uma fantasia literária que, na ocasião, até me havia exaltado bastante, mas que, agora, não passava de uma lembrança longínqua e fria.
Reli esse artigo. Era um estudo bastante conciso sobre o significado simbólico da montanha nas mitologias antigas. Os diferentes ramos do simbólico eram, havia muito tempo, o meu estudo favorito — eu acreditava ingenuamente compreender algo ali — e, além disso, eu amava a montanha como alpinista, apaixonadamente. O encontro desses dois tipos de interesses, tão diferentes, sobre o mesmo tema, a montanha, tinha colorido de lirismo certas passagens de meu artigo. (Tais encontros, tão incongruentes quanto possam parecer, estão para muitos na gênese daquilo que chamamos vulgarmente poesia; eu faço essa observação, como sugestão, aos críticos e aos estetas que se esforçam para iluminar as entranhas desse misterioso tipo de linguagem.)
Na tradição da fabulação, eu tinha escrito essencialmente que a Montanha é o elo entre a Terra e o Céu. Seu pico toca o mundo da eternidade, e sua base se ramifica em contrafortes múltiplos no mundo dos mortais. Ela é o caminho pelo qual o homem pode elevar-se à divindade, e a divindade revelar-se ao homem. Os patriarcas e os profetas do Antigo Testamento viam o Senhor face a face em lugares elevados. É o Sinai e é o Nebo de Moisés, e são, no Novo Testamento, o Monte das Oliveiras e o Gólgota. Eu tinha ido até buscar esse antigo símbolo da montanha nas sábias construções piramidais do Egito e da Caldeia. Passando pelos arianos, eu lembrara essas obscuras lendas dos vedas, em que o soma, o “licor” que é a “semente da imortalidade”, diz-se que reside, em sua forma luminosa e sutil,“na montanha”. Na índia, o Himalaia é a residência de Shiva, de sua esposa “Filha da Montanha”, e das “Mães” dos mundos — da mesma forma que na Grécia o rei dos deuses tinha sua corte no Olimpo. Na mitologia grega, justamente, eu encontrara o símbolo completado pela história da revolta dos filhos da Terra que, com suas naturezas e meios terrestres, tentaram escalar o Olimpo e penetrar no Céu com seus pés argilosos; não deixava isso de ser o mesmo empreendimento que perseguiam os construtores da torre de Babel, que, sem renunciar às suas ambições múltiplas e pessoais, pretendiam atingir o reino do Único impessoal? Na China, tratava-se das “Montanhas dos Bem-aventurados”, e os antigos sábios instruíam seus discípulos à beira de um precipício…
Após ter assim feito um giro pelas mitologias mais conhecidas, eu passava a fazer considerações gerais sobre os símbolos, que eu alinhava em duas classes: aqueles que são submetidos somente às regras das “proporções”, e aqueles que são submetidos, também, às regras da “escala”. Essa distinção foi feita repetidas vezes. Só lembrando-a: a “proporção” concerne às relações entre as dimensões de um monumento; a “escala, às relações entre essas dimensões e aquelas do corpo humano. Um triângulo equilátero, símbolo da Trindade, tem exatamente o mesmo valor qualquer que seja sua dimensão; ele não tem a “escala”. Por outro lado, tomem uma catedral, façam dela uma redução exata de alguns decímetros de altura; esse objeto transmitirá sempre, por sua figura e por suas proporções, o sentido intelectual do monumento, mesmo se for necessário examinar com uma lupa certos detalhes; mas ele não produzirá mais a mesma emoção, nem provocará mais as mesmas atitudes; ele não estará mais na “escala”. E aquilo que define a escala da montanha simbólica por excelência — aquela que eu propunha chamar o Monte Análogo — é a sua inacessibilidade pelos meios humanos ordinários. Ora, o Sinai, Nebo e mesmo o Olimpo tornaram-se com o tempo aquilo que os alpinistas chamam “montanhas de pastoreio”; e mesmo os mais altos picos do Himalaia não são hoje mais vistos como inacessíveis. Todos esses picos perderam, portanto, seu poder analógico. O símbolo precisou refugiar-se em montanhas míticas, como o Merou dos hindus. Mas o Merou — para utilizar esse único exemplo —, se ele não está mais situado geograficamente, não pode mais conservar seu sentido impressionante de caminho que une a Terra ao Céu; ele pode ainda significar o centro ou o eixo de nosso sistema planetário, mas não mais o meio para o homem asceder.
“Para que uma montanha possa representar o papel de Monte Análogo, eu concluía, é necessário que seu pico seja inacessível, mas a base acessível aos seres humanos, tais como a natureza os fez. Ela deve ser única e deve existir geograficamente. A porta do invisível deve ser visível.”
Eis o que eu tinha escrito. Parecia, com efeito, a partir do meu artigo, tomado ao pé da letra, que eu acreditava na existência, em algum lugar na superfície do globo, de uma montanha muito mais alta que o monte Everest, o que era, do ponto de vista de uma pessoa dita sensata, um absurdo. E eis que alguém me toma ao pé da letra. E me fala de tentar “uma expedição”! Um louco? Um vigarista?… Mas e eu! Perguntei-me de repente, eu que escreví esse artigo, será que meus leitores não teriam o direito de me colocar a mesma pergunta? Então, serei um louco ou um vigarista? Ou simplesmente um bom escritor? — Bem, eu posso confessar agora, mesmo ao colocar-me essas perguntas pouco agradáveis, que eu sentia, bem no fundo de mim mesmo, apesar de tudo, que alguma coisa acreditava firmemente na realidade material do Monte Análogo.
Original
« Monsieur, j’ai lu votre article sur le Mont Analogue. Je m’étais cru le seul, jusqu’ici, à être convaincu de son existence. Aujourd’hui, nous sommes deux, demain nous serons dix, plus peut-être, et on pourra tenter l’expédition. Il faut que nous prenions contact le plus vite possible. Téléphonez-moi dès que vous pourrez à un des numéros ci-dessous. Je vous attends.
Pierre SOGOL, 37, passage des
Patriarches, Paris. »
(Suivaient cinq ou six numéros de téléphone auxquels je pouvais l’appeler à différentes heures de la journée.)
J’avais déjà presque oublié l’article auquel mon correspondant faisait allusion, et qui avait paru, près de trois mois auparavant, dans le numéro de mai de la Revue des Fossiles.
Flatté par cette marque d’intérêt d’un lecteur inconnu, j’éprouvais en même temps un certain malaise à voir prendre tellement au sérieux, presque au tragique, une fantaisie littéraire qui, sur le moment, m’avait assez exalté, mais qui, maintenant, était un souvenir déjà lointain et refroidi.
Je relus cet article. C’était une étude assez rapide sur la signification symbolique de la montagne dans les anciennes mythologies. Les différentes branches de la symbolique formaient depuis longtemps mon étude favorite – je croyais naïvement y comprendre quelque chose – et, par ailleurs, j’aimais la montagne en alpiniste, passionnément. La rencontre de ces deux sortes d’intérêt, si différentes, sur le même objet, la montagne, avait coloré de lyrisme certains passages de mon article. (De telles conjonctions, si incongrues qu’elles puissent paraître, sont pour beaucoup dans la genèse de ce que l’on appelle vulgairement poésie ; je livre cette remarque, à titre de suggestion, aux critiques et aux esthéticiens qui s’efforcent d’éclairer les dessous de cette mystérieuse sorte de langage.)
Dans la tradition fabuleuse, avais-je écrit en substance, la Montagne est le lien entre la Terre et le Ciel. Son sommet unique touche au monde de l’éternité, et sa base se ramifie en contreforts multiples dans le monde des mortels. Elle est la voie par laquelle l’homme peut s’élever à la divinité, et la divinité se révéler à l’homme. Les patriarches et prophètes de l’Ancien Testament voient le Seigneur face à face sur des lieux élevés. C’est le Sinaï et c’est le Nebo de Moïse, et ce sont, dans le Nouveau Testament, le Mont des Oliviers et le Golgotha. J’allais jusqu’à retrouver ce vieux symbole de la montagne dans les savantes constructions pyramidales d’Egypte et de Chaldée. Passant chez les Aryens, je rappelais ces obscures légendes des Védas, où le soma, la « liqueur » qui est la « semence d’immortalité », est dit résider, sous sa forme lumineuse et subtile, « dans la montagne ». Dans l’Inde, Himalaya est le séjour de Çiva, de son épouse « la Fille de la Montagne », et des « Mères » des mondes – de même qu’en Grèce le roi des dieux tenait sa cour sur l’Olympe. Dans la mythologie grecque, justement, je trouvais le symbole complété par l’histoire de la révolte des enfants de la Terre qui, avec leurs natures terrestres et des moyens terrestres, essayèrent d’escalader l’Olympe et de pénétrer dans le Ciel avec leurs pieds glaiseux ; n’était-ce pas d’ailleurs la même entreprise que poursuivaient les constructeurs de la tour de Babel, qui, sans renoncer à leurs ambitions multiples et personnelles, prétendaient atteindre au royaume de l’Unique impersonnel ? En Chine, il était question des « Montagnes des Bienheureux », et les anciens sages instruisaient leurs disciples sur le bord des précipices…
Après avoir ainsi fait le tour des mythologies les plus connues, je passais à des considérations générales sur les symboles, que je rangeais en deux classes : ceux qui sont soumis à des règles de « proportion » seulement, et ceux qui sont soumis, en plus, à des règles d’« échelle ». Cette distinction a souvent été faite. Je la rappelle pourtant : la « proportion » concerne les rapports entre les dimensions du monument, l’« échelle » les rapports entre ces dimensions et celles du corps humain. Un triangle équilatéral, symbole de la Trinité, a exactement la même valeur quelle que soit sa dimension ; il n’a pas d’« échelle ». Par contre, prenez une cathédrale, et faites-en une réduction exacte de quelques décimètres de haut ; cet objet transmettra toujours, par sa figure et ses proportions, le sens intellectuel du monument, même s’il faut en examiner à la loupe certains détails ; mais il ne produira plus du tout la même émotion, ne provoquera plus les mêmes attitudes ; il ne sera plus « à l’échelle ». Et ce qui définit l’échelle de la montagne symbolique par excellence – celle que je proposais de nommer le Mont Analogue –, c’est son inaccessibilité par les moyens humains ordinaires. Or, les Sinaï, Nebo et même Olympe sont devenus depuis longtemps ce que les alpinistes appellent des « montagnes à vaches » ; et même les plus hautes cimes de l’Himalaya ne sont plus regardées aujourd’hui comme inaccessibles. Tous ces sommets ont donc perdu leur puissance analogique. Le symbole a dû se réfugier en des montagnes tout à fait mythiques, telles que le Mérou des Hindous. Mais le Mérou – pour prendre cet unique exemple –, s’il n’est plus situé géographiquement, ne peut plus conserver son sens émouvant de voie unissant la Terre au Ciel ; il peut encore signifier le centre ou l’axe de notre système planétaire, mais non plus le moyen pour l’homme d’y accéder.
« Pour qu’une montagne puisse jouer le rôle de Mont Analogue, concluais-je, il faut que son sommet soit inaccessible, mais sa base accessible aux êtres humains tels que la nature les a faits. Elle doit être unique et elle doit exister géographiquement. La porte de l’invisible doit être visible. »
Voilà ce que j’avais écrit. Il ressortait en effet de mon article, pris à la lettre, que je croyais à l’existence, quelque part sur la surface du globe, d’une montagne beaucoup plus haute que le mont Everest, ce qui était, du point de vue d’une personne dite sensée, une absurdité. Et voici que quelqu’un me prend au mot ! Et me parle de « tenter l’expédition » ! Un fou ? Un farceur ?… Mais moi ! me dis-je tout à coup, moi qui ai écrit cet article, est-ce que mes lecteurs n’auraient pas le droit de me poser la même question ? Allons, suis-je un fou, ou un farceur ? Ou tout bonnement un littérateur ? – Eh bien, je peux l’avouer maintenant, tout en me posant ces questions peu agréables, je sentais qu’au fond de moi, malgré tout, quelque chose croyait fermement à la réalité matérielle du Mont Analogue.