Daumal (RDTT:21-23) – Despertar e agir

(RDTT)

Excerto traduzido por Antonio Pereira Carneiro de DAUMAL, René. Tu t’es toujours trompé. Paris: Mercure de France, 1970, p. 21-23 [epub da versão em inglês]

Antonio Pereira Carneiro

Tal homem se desperta, pela manhã, em sua cama. Apenas se levantou, já dormiu de novo; se entregando a todos automatismos que fazem seu corpo se vestir, sair, andar, ir para o trabalho, se agitar conforme a regra cotidiana, comer, conversar, ler jornal – pois, em geral, é somente o corpo que se encarrega disso tudo –, feito isso, adormece. Para se despertar precisaria que pensasse: toda esta agitação está fora de mim. Precisar-lhe-ia um ato de reflexão. Mas, se este ato desencadeia em si novos automatismos, aqueles da memória, do raciocínio, sua voz poderá continuar a julgar que sempre refletiu; mas, ainda está adormecido. Pode passar assim jornadas inteiras sem se despertar um só instante. Sonha somente com isso no meio da multidão, e tu te verás rodeado de um povo de sonâmbulos. O homem passa, não, como se diz, um terço de sua vida, mas, quase toda vida a dormir nesse verdadeiro sono do espírito. E este sono, que é a inércia da consciência, tem a faca e o queijo na mão para pegar o homem em suas armadilhas: pois este, naturalmente e quase irremediavelmente preguiçoso, consentiria se despertar certamente, mas, como o esforço lhe repugna, desejaria; e, ingenuamente acreditaria ser a coisa possível, que este esforço uma vez realizado o colocaria em estado de vigília definitivo ou ao menos por alguma longa duração; querendo se repousar de seu despertar, adormece. Assim como não se pode querer dormir, pois querer, o que quer que seja, é sempre se despertar, do mesmo modo só se pode permanecer se se quiser a todo instante.

E o único ato imediato que tu podes realizar, é te despertar, é tomar consciência de ti-mesmo. Lança então um olhar sobre o que tu acreditas ter feito após o começo desta jornada, é talvez a primeira vez que tu te despertas verdadeiramente; e é somente neste instante que tu tens consciência que tu tens consciência de tudo o que fizestes, como autômato sem pensamento. Para maioria, os homens não se despertam momento algum a ponto de se darem conta de ter dormido. Agora, aceites se tu quiseres esta existência de sonâmbulo. Poderás te comportar na vida como ocioso, operário, camponês, mercador, diplomata, artista, filósofo sem te despertar nunca, senão, de tempos em tempos, precisamente o que for necessário para usufruir ou sofrer da maneira a qual tu dormes; isso seria talvez, até mais cômodo, sem mudar nada quanto a tua aparência, de não te despertar de jeito algum.

E como a realidade do espírito é ato, a ideia de substância pensante não sendo nada se não é atualmente pensamento nesse sono, ausência do ato, privação do pensamento, não tem nada, é verdadeiramente a morte espiritual, mas, se escolheste ser, te engajaste sobre árduo caminho, subindo sem cessar e a protestar o esforço a todo instante. Tu te despertas; e imediatamente deves te despertar novamente. Tu te despertas de teu despertar. Teu despertar primeiro apareceu como um despertar a teu despertar segundo. Por esta marcha reflexiva a consciência passa perpetuamente ao ato. Ao passo que outros homens, em sua maioria, não fazem senão se despertar, adormecer, se despertar, adormecer, subir um degrau da consciência para o descer logo, não se elevando nunca acima desta linha ziguezagueante, te encontras e reencontras conforme indefinida trajetória de despertar sempre novos. E como nada vale senão para a consciência penetrante, tua reflexão sobre este despertar perpétuo rumo a mais alta consciência possível constituirá a ciência das ciências. Chamo-a metafísica. Mas, toda, toda ciência das ciências que ela é, não esqueças que ela não será jamais senão o itinerário traçado antecipadamente, e à grandes traços, de real progressão se tu o esqueces, se acreditas ter acabado de te despertar porque estabeleceste antecipadamente as condições de teu despertar perpétuo, a esse momento de novo te adormeces, tu te adormeces na Morte espiritual.

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