De onde procedem as virtudes ocultas das coisas

(Riffard1996)

De onde procedem as virtudes ocultas das coisas

Toda a gente sabe que o íman tem a particular virtude de atrair o ferro e que, se se lhe apresentar um diamante, o deixa. Também o âmbar e o balagius friccionados e aquecidos separam a palha. Uma vez acesa, a pedra Asbestus nunca mais se apaga ou só muito dificilmente. O carbúnculo brilha na escuridão. O aetites fortifica o fruto das mulheres e das plantas. O jaspe detém o sangue. O peixinho chamado Echeneis impede um barco de se pôr em marcha. O ruibarbo cura a cólera. O fígado do camaleão, queimado nas extremidades, atrai as chuvas e tempestades. A pedra heliotropo diminui a visão e torna invisível quem a transporta. A pedra de Lyncour aclara os olhos. O (Líparo atrai os animais. O Synochitides faz vir os demonios do inferno. O Anachitides faz aparecer os espíritos celestes. O Ennectis, colocado sobre as pessoas que dormem, dá-lhes poder advinhatório. iHá uma erva na Etiopia que dizem que seca os lagos e abre tudo o que estiver fechado. Na Historia, vê-se o costume de os reis da Pérsia darem aos seus embaixadores a erva Latax, para que nada lhes faltasse no sítio para onde fossem. Acredita-se também que há uma erva de Esparta ou da Tartária que, tendo-se provado ou metido na boca, se pode estar doze dias sem comer nem beber. Apoleyo disse que soube através de Deus, que há vários tipos de ervas e pedras com as quais os homens podem conservar a vida eternamente, mas não é permitido aos homens conhecê-las porque, ainda que vivam pouco, não deixam de se aplicar ao mal e de cometer toda a espécie de crimes, e talvez ataquem os próprios deuses se viverem muito tempo. Mas nem um só autor dos que escreveram grossos volumes sobre as propriedades, explicou de onde vêm estas virtudes, nem Hermes, nem Bocus, nem Aarão, nem Orfeu, nem Teofrasto, nem Tebite, nem Zenótemis, nem Zoroastres, nem Evax, nem Dioscórides, nem Isaac, o Judeu, nem Zacarias, o Babilónio, nem Alberto, nem Arnaldo. Contudo, dizem que Zacarias escreveu a Mitrídates dizendo que existe uma grande virtude nas pedras e nas ervas e que delas depende o destino dos homens.

Para saber, pois, de onde vem isto, é preciso uma profunda especulação. Alexandre, o Peripatético, sem abandonar por um momento as suas opiniões e qualidades, é de opinião que isto provém dos eleemntos e das suas qualidades, em que poderia crer-se se as suas qualidades não fossem de uma mesma espécie, e se várias operações de pedras não fossem nada semelhantes em espécie e em género, da mesma espécie e tipo. Por isso, os Académicos, seguidores de Platão, atribuem estas virtudes às ideias que formam as coisas. Avicena defende que vêm das inteligências, Hermes das estrelas e Alberto reduz estas operações [198] às formas específicas das coisas. E ainda que se encontrem algumas diferenças nas opiniões destes autores, realmente, quando se compreendem muito bem, não há nenhum que se afaste da verdade, porque todos os seus discursos se referem, em variedade, ao mesmo efeito.

Deus, que é fim e origem de todas as virtudes, outorga a reprodução das suas ideias às inteligências, seus ministros que, executando-as fielmente, comunicam, por meio da virtude da ideia, as coisas que lhe foram confiadas aos céus e às estrelas, os quais, tal como os instrumentos dispostos previamente, ou esperando receber forma que, como disse Platão no Timeu, residem na divina magestade pela dedução dos astros. E aquele que dá as formas distribui-as pelo ministério das inteligências, estabelecidas por ele para conduzir e vigiar as suas obras a quem outorgou este poder sobre as coisas que lhes confiou, para que todas as virtudes das pedras, das ervas, dos metais e das demais coisas, sejam conferidas pelas inteligências que presidem. As formas e as virtudes provêm, pois, primeiro das ideias, seguidamente das inteligências que presidem, governam ou conduzem, depois dos aspectos celestes e por último da complexão dos elementos que, devidamente dispostos, correspondem às influências dos céus.

As operações fazem-se da seguinte maneira: sobre as coisas que vemos aqui em baixo, pelas formas expressas; nos céus pelas formas que dispõem, sobre as inteligências como modo de mediação; no mestre ou arquétipo pelas ideias e formas exemplares. Todas elas devem concorrer para a execução de todos os efeitos e de cada virtude.

Por isso, há uma virtude e uma operação admirável em cada erva e em cada pedra, mas há uma muito maior nas estrelas, para além do que cada coisa toma ou recebe muitas inteligências que presidem, sobretudo da causa primeira, perante a qual respondem mutuamente as coisas consumadas que, conforman-do-se umas às outras com o seu harmonioso concerto louvam, como com certos hinos, o seu dono soberano, assim como, com o seu canto, incitam os santos meninos do forno da Caldeia. Bendizei ao Senhor tudo o que germina na terra e tudo o que se move no mar, todos os pássaros do céu, os animais e os rebanhos e juntai também as criaturas humanas. Não há, pois, outra causa necessária dos efeitos, para além da relação e acordo de todas as coisas com a causa primeira e a sua correspondência com estes exemplares divinos e com as ideias eternas. Cada coisa tem o seu lugar fixo e determinado no arquétipo, pelo qual vive e de que extrai a sua origem. Todas as virtudes das ervas, pedras, metais, animais, palavras, discursos, raciocínios, de tudo o que existe, dependem e vêm de Deus que, ainda que actuando pelas inteligências e pelos céus, não deixa, por vezes, de obrar [199] por si mesmo, sem usar estes meios e os do seu ministério. Estas operações chamam-se milagres. Porque as causas primeiras actuam por mandato e ordem e as segundas, que Platão e outros chamam ministros, actuam por necessidade, ainda que necessariamente produzam os seus efeitos. Contudo, ele dispensa-os por vezes e suspende-os quando quer, de maneira que abandonam totalmente ou desistem da necessidade do seu mandato e ordem. Aqui residem os maiores milagres de Deus. Por isso o fogo não fez nada aos meninos que estavam no forno da Caldeia. Do mesmo modo, o Sol retrocedeu ou parou um dia inteiro e interrompeu o seu curso por mandato de Josué. Assim também retrocedeu dez linhas ou dez horas pela oração de Ezequias. Da mesma forma, quando da Paixão de Cristo, o Sol eclipsou-se em plena luz. E não se pode penetrar nem aprofundar as raízes destas operações com raciocínio algum, magia ou ciência, por secreta e profunda que seja. É preciso conhecê-las e procurá-las por meio dos oráculos divinos.

 

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