Despertar do “Eu” (Abellio)

(Abellio, Serant1955)

Pode-se, antes de tudo, estudar as condições do surgimento do “Eu” transcendental?

O único obstáculo ao despertar do “Eu” é, no sentido pascaliano da palavra, o divertimento. O homem da visão natural está perpetuamente distraído. Pode-se mesmo dizer que a função do homem “exterior” é inventar sem cessar espetáculos e criar para si eventos para sair de si, dilatar seu Eu no mundo até abolir toda individualidade e, em sentido amplo, embriagar-se da “droga” do mundo: no limite, o ideal do homem “exterior” se exprime na agitação impessoal dos “mundanos”, a dissolução na “mundanidade”. O sofrimento em todas as suas formas — fadiga, dor, preocupação, náusea, angústia — não é então senão o sinal da recontração e do despertar do corpo, de seu retorno sobre si, de sua reancoragem no Eu imóvel. É evidente que uma contradição habita esse duplo movimento, que toma a forma de “respiração” do corpo acompanhando e contrariando a do mundo: toda expansão vital está condenada a alimentar o germe de sua própria subversão. Não apenas essa dilatação, em seu termo e no máximo de sua tensão, conhece seu orgasmo resolutivo, mas só é sustentada pela esperança e pelo terror desse fim. Ela só quer preencher o tempo ao máximo porque ela mesma é preenchida pela certeza do fim do tempo. Ela é ao mesmo tempo chamado e recusa do estouro, sofrimento e gozo, pressa da lentidão. Essa dualidade é a de toda vida engajada no tempo banal. Por isso, o orgasmo que a resolve é nascimento para outro tempo, outra vida. Todo orgasmo é diluviano. O simbolismo do dilúvio é o da re-unificação paroxística, e o orgasmo sexual, que ilustra esse simbolismo da forma mais geral, o coloca ao alcance de todo ser, justamente para testemunhar a todos, por seu caráter universal, a virtualidade universal da transfiguração.

É a partir dessa dialética do interno e do externo e da perpétua interiorização no homem, sob forma de conhecimento, das aquisições de sua ciência “exterior”, que é preciso experimentar o acesso consciente e voluntário à realidade natural transfigurada, isto é, tentar dominar o orgasmo. Dominar o orgasmo é conquistar todos os poderes. A esse respeito, nunca se dará importância suficiente ao estudo do modo de ação das drogas que, mesmo de maneira formal ou por simples analogia, permite estruturar certos estados reputados obscuros ou inefáveis e reconstituir sua gênese. Não colocaremos nenhuma irreverência nessa constatação, possível entre muitas outras, de que a oração, reduzida à repetição mecânica de fórmulas, entorpece certas funções para excitar outras e se inscreve ela também na série indefinida das drogas: a esse respeito, certos aproximações e conclusões se tornarão possíveis, que iluminarão de maneira útil a via chamada devocional. E talvez pressintamos desde já a verdade que buscamos se opusermos à artificialidade das drogas, que é a chave dessa via, uma naturalidade superior capaz de integrar sem esforço a tentação e a necessidade da droga e de sua repetição, assim como seus frutos, a via que chamaremos gnóstica, que permanece no momento para nós puramente teórica ou ideal, pois só a concebemos para escapar dos vícios, declínios, quedas ou ilusões inerentes à outra via, mas que todo nosso esforço presente tende justamente a abrir para se abolir como esforço.

A primeira questão é saber qual nível do corpo as drogas excitam e qual outro nível elas entorpecem. Toda embriaguez contém juntos fatores de euforia e agressividade. Em si, essa dualidade é banal. A euforia é o produto da dilatação, do desenraizamento do corpo; a agressividade, de sua necessidade de reencontro. Nos bêbados, a ideia fixa é a consequência ambivalente desses dois estados, participa de um e de outro, é um produto da necessidade de evasão e da necessidade de ancoragem; o bêbado insiste em se ver Deus ou César no pobre reino de suas ambições reprimidas. No entanto, há embriaguezes inspiradas como há embriaguezes vulgares. A euforia, que entorpece o corpo físico, liberta os sonhos e os ideais, mas estes valem o que vale o fundo gnósico capitalizado no homem, e podem habitar todos os círculos do céu e do inferno, do nível das larvas sem consciência ao das altas assunções. Dir-se-ia que a droga só dilata ou relaxa o corpo físico na horizontal, em modo de amplitude, para libertar o corpo psíquico ou o corpo mental na vertical, em modo de intensidade, e aliás nos dois sentidos dessa vertical, para Satanás, que é a matéria privada de espírito, e para Lúcifer, que é o espírito recusando a matéria. Daí uma definição possível: é “droga” tudo o que aumenta a tensão do par tellurismo-niilismo. Daí também as ambiguidades que a embriaguez conhece: o inspirado exausto ou decepcionado cai na devassidão, mas uma devassidão inventiva, os místicos se tornam libertinos e libertinos devassos, o “trago de cachaça” libera os instintos de assassinato ao mesmo tempo que os de sacrifício e faz indiferentemente assassinos e heróis.

 

 

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