Berdiaeff, L’esprit de Dostoïevski. (1945) [1974]
Dostoiévski surge em outra época do mundo, em outro estágio da humanidade. Nele também o homem deixou de pertencer a essa ordem cósmica objetiva à qual pertencia o homem de Dante. Durante o período moderno, o homem tentou se fixar na superfície da terra, se encerrar em um universo puramente humano. Deus e o diabo, o céu e o inferno haviam sido definitivamente repelidos para a esfera do incognoscível, sem comunicação com o aqui-embaixo, até que perdessem toda a realidade. O homem havia se tornado uma criatura plana de duas dimensões: havia perdido a dimensão da profundidade. Sua alma permanecia sozinha, seu espírito havia voado. Mas, um dia, as forças criadoras, a alegria que marcaram a época do Renascimento se esgotam. O homem sente que o chão sob seus pés não é tão firme e inabalável quanto lhe parecia. Desses profundos selados, ruídos sobem de repente, a existência desse subsolo e sua natureza vulcânica começam a se manifestar. Um abismo se abriu no fundo do próprio homem, e é ali que novamente se revelarão Deus e o diabo, o céu e o inferno. Nessas profundezas, a princípio, só se movem às apalpadelas: a luz do dia, que ilumina o mundo da alma e o mundo material para o qual foi destinada, começa a se apagar, enquanto a nova luz ainda não se acendeu bruscamente.
A época moderna serviu de aprendizado para a liberdade humana, as forças do homem se manifestaram livremente. Mas ao término desse período da história, essa prova da liberdade humana se transporta para outro plano, em outra dimensão, e é ali que se desenrola o destino humano. Deixando o mundo psíquico iluminado pela luz diurna que brilhou sobre toda a época moderna, a liberdade humana se aventura nas profundezas do mundo espiritual. Dir-se-ia uma descida aos infernos. Ali se revelarão novamente ao homem, não apenas o diabo e a geena, mas Deus e o céu; eles se revelarão não mais segundo uma ordem objetiva, imposta ao homem de fora, mas como um encontro com as profundezas supremas do espírito humano, como uma realidade interiormente revelada. Toda a obra de Dostoiévski está ali. O homem ocupa ali um lugar totalmente diferente do que na obra de Dante ou Shakespeare. Nem participa de uma ordem imutável e objetiva, nem permanece na superfície da terra ou na superfície de sua alma. A vida espiritual lhe é restituída, mas é em si mesmo que a reencontra, em sua própria profundidade, através das trevas, do purgatório e do inferno. O caminho que Dostoiévski segue é, portanto, imanente à vida espiritual, e não transcendente. O que não quer dizer, evidentemente, que ele tenha negado toda realidade transcendente.