Dostoiévski foi um realista? (Berdiaeff)

Berdiaeff, L’esprit de Dostoïevski. (1945) [1974] 

Dostoiévski foi um realista? Antes de elucidar essa questão, é preciso perguntar em [26] que medida uma arte original e grandiosa pode ser realista? Sem dúvida, o próprio Dostoiévski gostava de se intitular como tal e considerava que seu realismo era o próprio realismo da vida. Ele certamente não entendia essa palavra no sentido em que a crítica oficial a toma quando afirma a existência de uma escola realista cujo líder seria Gógol: nada do que essa crítica abrange com esse rótulo jamais existiu, nem em Gógol, muito menos em Dostoiévski. A verdade é que toda arte original é simbólica: ela é uma ponte lançada entre dois mundos, o sinal sob o qual se expressa uma realidade profunda, a realidade autêntica. O objetivo da arte é, ultrapassando a realidade empírica, expressar a realidade oculta, mas ela nunca pode restituí-la de forma direta, apenas por meio de símbolos, de sombras projetadas. Ninguém menos que Dostoiévski foi tão preocupado com o mundo empírico. Sua arte está inteiramente imersa nessa realidade profunda, nesse universo espiritual. A própria construção de seus romances não lembra em nada a feitura dos chamados romances “realistas”. Através da trama exterior, que relata algum romance criminoso inverossímil, sente-se por toda parte a presença dessa realidade interna, diferente, mais real do que a outra. Pois, em Dostoiévski, o mundo empírico, as formas exteriores da vida, o homem de carne e osso não são as realidades últimas. A realidade, para ele, é a profundidade espiritual do homem, é o destino do espírito humano. A realidade são as relações [27] do homem com Deus, do homem com o diabo; a realidade são as ideias pelas quais o homem vive.

A duplicação do espírito, tema essencial de todos os romances de Dostoiévski, não se presta à arte realista. Como chamar de realista o quadro genial das relações entre Ivan Karamázov e Smerdiákov, por meio das quais se torna sensível a própria duplicação de Ivan? E ainda menos o quadro das relações entre Ivan e o diabo. Não se pode fazer de Dostoiévski um psicólogo realista; psicólogo, ele não é, mas pneumatólogo e metafísico simbolista. Nele, sob a vida consciente, esconde-se sempre um universo inconsciente, ao qual estão ligados seus pressentimentos de visionário. E os seres não se comunicam apenas pelos fios visíveis à luz do dia da consciência, mas sobretudo por esses laços misteriosos que mergulham na profundidade de sua vida inconsciente. Laços ocultos que unem Míchkin a Nastácia Filíppovna e a Rogójine, Raskólnikov a Svidrigáilov, Ivan Karamázov a Smerdiákov, Stávroguin a Khromonójka e a Chátov. Dostoiévski nos mostra todos eles ligados uns aos outros por elos que não são deste mundo. Nada de contingente, de fato, em suas relações, nenhum lugar para o acaso de um realismo empírico. Parece que o encontro desses seres foi determinado desde toda a eternidade por uma vontade superior; eles carregam a marca de um destino que se cumpre. Todos [28] seus choques, suas reações recíprocas expressam, não a falsa realidade objetiva, mas a realidade interna, o destino interior dos humanos. É neles que se expressa verdadeiramente a grande “ideia” do universo, que se resolve o enigma do homem e do caminho que ele segue. Tudo isso se assemelha muito pouco ao que se costuma chamar de romance “realista”. Mas, se é absolutamente necessário chamar Dostoiévski de realista, diremos um realista místico.

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