Berdiaeff, L’esprit de Dostoïevski. (1945) [1974]
É muito instrutivo comparar a concepção do homem em Dante, Shakespeare e Dostoiévski.
Para Dante, assim como para São Tomás de Aquino, o homem é uma parte orgânica da ordem objetiva do mundo, do cosmos divino. Ele é um dos degraus da hierarquia universal. Acima dele está o céu; abaixo, o inferno. Deus e o diabo são realidades que pertencem à ordem universal, impostas ao homem de fora. E os círculos do inferno, com seus tormentos horríveis, apenas confirmam a existência dessa ordem divina objetiva. Não é nas profundezas do espírito humano, nos abismos da experiência humana, que Deus e o diabo, o céu e o inferno se revelam: eles são dados ao homem, possuem uma realidade tão tangível quanto os objetos do mundo material.
Essa concepção medieval do mundo, da qual Dante foi o intérprete genial, está intimamente ligada à visão do homem antigo. O homem [53] sentia acima de si o céu com sua hierarquia celestial e, abaixo, a geena. Uma fé que só viria a ser abalada no Renascimento. Dessa época em diante, surge uma concepção do mundo absolutamente nova. Começa a era do humanismo, em que o homem se afirma e se enclausura no mundo da natureza. O céu e o inferno se fecham para o homem novo – mas o infinito dos mundos se abre para ele. Já não há um cosmos único com sua hierarquia organizada. O céu astronômico, infinito e vazio, não se assemelha ao céu de Dante, ao céu medieval – e compreende-se o terror que Pascal expressa diante dos “espaços infinitos”. O homem está perdido nessas solidões sem limites, que o cosmos não organiza mais.
É então que ele penetra em si mesmo, em seu vasto império psíquico; refugia-se cada vez mais na Terra, teme desprender-se dela, teme o infinito que lhe é estranho. É o período humanista da era moderna, durante o qual as forças criativas do homem se expandem. Ele não está mais preso a nenhuma ordem cósmica objetiva, imposta de fora. Sente-se livre. É o Renascimento, e Shakespeare foi um de seus maiores gênios. Sua obra revela, pela primeira vez, o mundo psíquico humano, infinitamente complexo e diverso – o mundo das paixões, cheio de poder e energia, fervilhando com o jogo das forças humanas. O céu de Dante, o inferno de Dante já desapareceram [54] na obra de Shakespeare.
A concepção de mundo dos humanistas determina sua obra e o lugar que o homem ocupa nela: uma visão voltada para o mundo psíquico do homem, e não para o mundo espiritual, para as profundezas últimas de seu ser. O homem permanece na periferia da alma; renuncia aos centros espirituais. Shakespeare, psicólogo sublime, foi o psicólogo da arte humanista.