CHARLES-ANDRÉ GILIS — A DOUTRINA INICIÁTICA DA PEREGRINAÇÃO
Prólogo
Os ritos da peregrinação islâmica não foram objeto no Ocidente de qualquer interpretação de conjunto.
Esta lacuna se explica facilmente. Embora devam, em princípio, serem realizados por todo muçulmano e que não tenham por eles mesmo qualquer caráter reservado, só se pode compreendê-los por referência às doutrinas metafísicas e iniciáticas do Islã. Mais que todo outro ato sagrado, a peregrinação reflete estes últimos no domínio da religião comum e exterior. É portanto difícil, para não dizer impossível, tentar reconstituí-la e interpretá-la pelos meios, eles mesmo totalmente exteriores e profanos, da ciência e da “islamologia” modernas. Se por estes métodos, a descrição dos ritos fez notáveis progressos, que modificaram tentativas laboriosas da primeira metade do século, não se deu o mesmo, pois muito é necessário, no tocante a sua compreensão.
A esta primeira dificuldade se adiciona uma outra, tendo a ver com a natureza mesma do ensinamento veiculado na ocorrência. A peregrinação islâmica não tem por objetivo um túmulo ou um lugar santo ordinário, se realiza em direção aquilo que aparece como uma figuração do Centro do Mundo. Eis um dado fundamental e característico, do qual todo peregrino tem mais ou menos consciência quando chega à Meca. A doutrina esotérica permitindo interpretar os ritos da peregrinação em seu conjunto é portanto aquela que se relaciona ao Centro iniciático do Mundo e à representação particular que é a sua, no coração do Islã. Ora trata-se de um aspecto reservado e “misterioso” cujos representantes do esoterismo eles mesmos falam frequentemente de uma maneira alusiva e indireta, pois se relaciona ao núcleo mais secreto da tradição. Isso explica que mesmo os orientalistas que, como Louis Massignon ou Henry Corbin, compreenderam o interesse que havia em utilizar os textos do Tasawwuf com vistas a uma interpretação da peregrinação e de seu simbolismo, só resultaram em resultados fragmentários e por vezes mesmo contestáveis, na falta de uma qualificação suficiente para discernir a dimensão real do ensinamento contido em suas fontes.
A significação esotérica da peregrinação põe assim em causa a relação da forma particular revestida pelo Islã histórico com o Centro iniciático supremo, sede da Tradição primordial e unânime; e isso tanto mais quanto se trata de um rito muito antigo que só conhecemos sob a modalidade final, tal qual foi fixada pelo Profeta. Segundo os relatos tradicionais, sua origem coincide com efeito com aquela da humanidade terrestre, e remonta mesmo além. A peregrinação associa-se assim ao conjunto do presente ciclo humano a seu eixo imutável; ao mesmo tempo, inclui uma representação dos aspectos iniciáticos essenciais que permanecem perpetuamente presentes no Centro do Mundo e constituem o depósito sagrado do qual é o guardião. Deve-se admitir no entanto que a doutrina relativa a este Centro não foi jamais precisada por escrito antes de uma época recente e que só encontramo-la formulada de uma maneira explícita na obra de René Guénon. Isto revém a dizer que o recurso a esta obra é verdadeiramente indispensável do momento que se busca compreender o rito da peregrinação islâmica e interpretar os dados esotéricos que a ele se relacionam. Sem esta referência fundamental o presente estudo não teria sido empreendido. Ela arrisca todavia de permanecer em grande parte ininteligível àqueles que não teriam um conhecimento suficiente da obra guenoniana, de tal sorte que não tivemos outra escolha que de supô-la conhecida de nossos leitores.
Possam as páginas que seguem serem compreendidas também como uma homenagem de reconhecimento. Possam mostrar, em um momento onde o ensinamento de Guénon é maltratado por todos os lados e tratado com um desenvoltura que acabou por tomar proporções de um escândalo, o recurso incomparável que ele representa para a vivificação da inteligência tradicional e o benefício constante que se pode dele tirar quando se trata de estudos concernindo mais particularmente o Islã.
PEREGRINAÇÃO SEGUNDO IBN ARABI
Em insistindo como fizemos sobra a parte que tem que ver com o ensinamento de René Guénon — no Islã, Xeique Abd al-Wahid Yahya — e aquele de Ibn Arabi na elaboração do presente estudo, demos uma certa relevância ao complementarismo atual de suas funções doutrinais, em uma perspectiva cíclica “pós-maometana”. Esta é conhecida no Ocidente principalmente por intermediário de fontes xiitas, e de uma maneira sobre tudo pouco satisfatória. Não é o lugar de desenvolver este ponto. Que nos seja no entanto permitido, para terminar esta notas, mencionar o papel essencial que convém atribuir, para esclarecer este complementarismo, ao saudoso Michel Valsan — no Islã, Xeique Mustafa Abd al-Aziz — e sublinhar quanto sua intervenção foi decisiva, tanto neste domínio das “aplicações” que se poderia tirar da obre guenoniana quanto por aquilo que concerne a apresentação dos escritos e do ensinamento do Xeique al-Akbar. Seu conhecimento dos aspectos interiores da peregrinação islâmica era incomparável.
É a sua memória venerada que dedicamos esta obra. Que a ele somente recaia o bem e o mérito que aí se possam encontrar.
Índice
I Pequena e grande peregrinações
II Significação própria da ‘umra
III A Meca e a Caaba
IV A Caaba primordial
V A Caaba de Abraão e de Ismael
VI A Caaba maometana
VII A forma atual da Caaba
VIII O estado de sacralização
IX Sacralização e intenção
X Os regimes jurídicos da peregrinação
XI A Talbiya
XII AS CIRCUNVOLUÇÕES RITUAIS
XIII O sétimo curso
XIV Lugar do sa’y no conjunto dos ritos da peregrinação
XV Arafa
XVI A ifada e Muzdalifa
XVII Mina
XVIII O retorno à Meca e o fim da peregrinação
XIX A peregrinação universal
XX A Cidade iluminada