—Uma nota de seu Diário mostra-nos isso como leitor assíduo de Bhagavad-Gita.
—É um dos grandes livros que me formaram. Nele encontro sempre uma significação nova, profunda. É um livro muito consolador, porque, como sabe, nele revela Krishna à Arjuna todas as possibilidades de salvar-se, quer dizer de encontrar um sentido à sua existência… De minha parte, acredito que é a chave de abóbada do hinduísmo, a síntese do espírito hindu e de todos os seus caminhos, de todas suas filosofias, de todas suas técnicas de salvação. O grande problema era este: para «salvar-se» —no sentido hindu— e liberar-se deste mundo maligno, é preciso abandonar a vida, a sociedade, retirar-se aos bosques como os rishis dos Upanishads, como os iogues? Terá que dedicar-se exclusivamente à devoção mística? Não, Krishna revela que todos, a partir de qualquer profissão, podem chegar até ele, encontrar o sentido da existência, salvar-se deste nada de ilusões e de provas… Todas as vocações podem levar a salvação. Não são tão somente os místicos, os iogues, ou os filósofos os que conhecerão a libertação, mas também, o homem de ação, que permanece no mundo, mas a condição de atuar nele conforme ao modelo revelado por Krishna. Dizia que se trata de um livro consolador, mas é ao mesmo tempo a justificação que se dá à existência da história. Repete-se constantemente que o espírito hindu se desentende da história. É certo, mas não em Bhagavad-Gita. Arjuna se achava disposto, a grande batalha estava a ponto de começar, e Arjuna duvidava, pois sabia que mataria; a cometer, portanto, um pecado mortal. Então, revela-lhe Krishna que tudo pode ser distinto como tal que não persiga um objetivo pessoal, como tal que não mate por ódio, por desejo de proveito, ou para se sentir um herói… Tudo pode ser distinto se aceitar a luta como uma coisa impessoal, como algo que se faz em nome do deus, em nome de Krishna e —segundo esta fórmula extraordinária— se «renuncia ao fruto de seus atos». Na guerra, «renunciar ao fruto de seus atos» é renunciar ao fruto do sacrifício que se realiza ao matar ou ao ser morto, como se se fizesse uma oferenda em certo modo ritual ao deus. Deste modo é possível salvar do ciclo infernal de Carma; nossos atos não são já a semente de outros atos. Já conhece, com efeito, a doutrina do carma sobre a casualidade universal: quanto fazemos terá mais tarde um efeito; todo gesto serve de preparação a outro gesto… Pois bem, se em plena atividade, inclusive guerreira, não pensa já em si o homem, se abandonar o «fruto de seu ato», fica suprimido esse ciclo infernal de causa e efeito. [Mircea Eliade]