Estrutura e Funcionamento da Alma
Conhecido antes do De anima de Aristóteles, o De anima de Avicena fornece o âmbito quase definitivo da teoria peripatética da alma. A especificidade da abordagem aviceniana é articular sistematicamente uma teoria anatômica funcional do cérebro, uma classificação das diferentes atividades psicológicas da alma, uma teoria do pensamento intelectual ou intelectivo que situa o ato de pensamento do homem no seio de um processo de emanação tendo como primeiro e último cenário o conjunto do cosmo inteligível (o universo das Inteligências e dos intelectos separados, proposto pelo De causis). A organicidade do laço estabelecido entre biologia, psicologia e teologia explica o sucesso do modelo aviceniano.
A) Teoria das faculdades e localização cerebral — A teoria aviceniana da alma distingue cinco faculdades ou potências íntimas (ab intus) da alma (vires animae) assegurando a recepção e o tratamento dos dados externos (a foris) provenientes dos cinco sentidos (De An., I, 5). Cada uma dessas faculdades possui uma localização cerebral própria.
A primeira instância é o senso comum, cuja função é receber as formas sensíveis transmitidas à alma pelos cinco sentidos. A segunda é a vis formans (al-musawwira) ou imaginatio (khayal) cuja função é reter essas formas fora de toda estimulação atual (post remotionem sensibilium). A terceira instância, chamada vis imaginativa (mutakkayyila) nos vivos animados em geral e vis cogitans (mufakkira) no homem, serve para compor e dissociar as imagens conservadas na imaginatio. A quarta é a vis aestimationis (wahmiyya), cujo papel é apreender as “intenções não-sentidas residindo nos sensíveis singulares”: no sentido próprio do termo, as “intenções” (intentiones) designam o que os sentidos interiores percebem de uma realidade sensível, sem que “os sentidos exteriores lhes sirvam de intermediário”. As “intenções não-sentidas dos sensíveis” se opõem, pois, às “formas dos sensíveis”, que são percebidas em primeiro lugar pelos sentidos exteriores, e depois somente (e graças a eles) pelos sentidos interiores. Um exemplo típico de “intenção” é a “periculosidade” do lobo, que o carneiro já percebeu, e que o faz fugir à vista da fera, isto é, à apresentação de sua “forma”. A quinta instância é a vis memorialis (hafiza) ou reminiscibilis (dhakir), que “retém as intenções apreendidas pela estimativa”. O conjunto da estrutura das potências da alma pode ser expresso por duas analogias de proporção: a relação da “memorial” com a estimativa é análoga à relação da imaginação com o senso comum; a relação da memorial e da estimativa com as intenções não-sentidas é análoga à relação da imaginação e do senso comum com as formas sensíveis.
O trabalho anatômico de Avicena desenvolve a versão “dinâmica” da “doutrina celular” da função cerebral introduzida por Qusta b. Luqa. A cada “célula” (ou “concavidade”) do cérebro é associada uma função específica: o sentido comum tem seu lugar na concavidade anterior, a imaginação na extremidade da concavidade anterior, a imaginativa ou cogitativa na concavidade mediana, no lugar do vermis cerebeloso (cuja ação valvar assegura a circulação do pneuma), a estimativa no cume da concavidade mediana, a memorial na concavidade posterior. Completando adequadamente o De natura hominis de Nemésio de Êmeso (atribuído pela Idade Média a Gregório de Nissa), o pseudo-agostiniano De spiritu et anima (Alcher de Clairvaux) e o De differentia de Qusta b. Luqa, a doutrina aviceniana das localizações cerebrais será largamente popularizada pela Philosophia pauperum de Albert d’Orlamünde (impressa sob o nome de Alberto Magno).
A particularidade mais notável dessa doutrina é que ela não inscreve o intelecto entre as potências receptivas da alma unida ao corpo. A psicologia filosófica árabe se afasta pois radicalmente da visão galenica da razão como virtus in corpore: nem a vis cogitativa nem a vis aestimativa são de ordem intelectual ou intelectiva. Como sublinhará Averróis, o erro de Galeno foi ter confundido o pensamento capaz de “intenções universais”, ou razão, e a simples cogitativa, capaz apenas de “intenções individuais” (De An., III, com. 6).
Essa distinção, que coincide com a distinção moderna entre o “conceito geral abstrato”, de origem empírica, e a Ideia pura, de origem não-empírica, corresponde à distinção farabiana entre o universal como forma inteligível apegada a uma matéria e desapegada da matéria por “abstração”, objeto de intelecto em ato (in effectu), e o inteligível verdadeiro, por si separado de toda matéria, objeto do intelecto “adquirido” (intellectus adeptus), “uma vez que a alma entrou em posse de todos os inteligíveis” de origem empírica. Mutatis mutandis, é a versão medieval da distinção entre o empírico e o transcendental. (Excertos de Alain de Libera, Filosofia Medieval)