Julius Evola — A Metafísica do Sexo
A doutrina do andrógino no misticismo cristão
Vimos que, na opinião de Scoto Eriugena, a doutrina do andrógino tinha aparecido nos próprios quadros da teologia cristã. O mesmo tema aparece também, e sem que se verifique qualquer relação visível com Scota, partindo, ao contrário, sobretudo de Jacob Boehme num outro grupo pouco conhecido de místicos e de exegetas, os quais, mantendo-se essencialmente na órbita do cristianismo, procuraram apresentar também a diferenciação dos sexos como uma consequência da queda do homem primordial, criado no início por Deus à sua imagem, macho e fêmea, isto é, andrógino.
Já foi por nós mencionado que a exegese cabalística se tinha dedicado a interpretar o mito bíblico neste sentido, e, em particular, que Leão, o judeu, tinha explicitamente tentado homologar o mito bíblico ao do «Banquete» de Platão. Os autores cristãos que acabamos de citar, a começar por Boehme, viram-se constrangidos, ao tentar desenvolver ideias análogas, mesmo sem se referirem a Platão e baseando-se exclusivamente na Bíblia, a fazer especulações sofísticas e forçadas para dar uma certa unidade a motivos heterogêneos que no mito bíblico se encontram, visivelmente, no estado de mistura sincretista. Ao contrário do que diz Platão, na Gênesis fala-se, com efeito, primeiro do ser original criado andrógino, depois da aparição dos sexos, não como resultado duma falta, mas duma iniciativa de Jeová, o qual, apercebendo-se dum defeito da sua anterior criação dos sete dias, e pensando que não convinha que Adão estivesse só separou e formou Eva do seu corpo. Existindo, pois, os sexos, fala-se em seguida do pecado de Adão, ao qual não pode dar-se, como já tivemos ocasião de afirmar, uma interpretação sexual, pois o preceito de que deverá multiplicar-se e formar com a mulher uma só carne, vem na Gênesis antes do relato da desobediência e da queda de Adão.
A teoria do andrógino exerceu, contudo, uma tal atração sobre vários místicos que os fez não se preocuparem com estas manifestas discordâncias objetivas, e procurarem fazer com que esta teoria fosse igualmente válida no quadro bíblico. Jacob Boehme, que está na origem desta corrente mais tardia, conhecia não somente a especulação hermética, como tinha tirado do hermetismo alquímico grande parte da sua terminologia simbólica (assim, considerou o Enxofre, Mercúrio, Nítrio, Água, Fogo, Sal, etc. os símbolos de potências cósmico-espirituais). Esta é a razão pela qual será verossímil pensar que foi buscar o tema do andrógino não à teologia hebraica, secreta da Cabala, mas sim ao hermetismo que sob a forma do Rebis empregava este tema graças a uma tradição independente derivada dos meios misteriosóficos e gnósticos1.
É o seguinte o enquadramento boehmiano do mito bíblico. Na sua origem, o ser devia ter sido, pois, criado andrógino, reunindo em si os princípios masculino e feminino (a que Boehme chamou também o Colorido do Fogo e o Colorido da Luz). O sono de Adão não foi o estado em que foi mergulhado quando Deus quis tirar a Eva do seu corpo, esse sono é apresentado como o símbolo duma primeira queda; para Boehme isso faz alusão ao estado em que se encontrava Adão quando, abusando da sua liberdade, se separou do mundo divino e se «imaginou» no da natureza, tornando-se terrestre e degradando-se. Certos continuadores de Boehme associaram este sono quer à vertigem de que Adão se sente possuído ao ver o acasalamento dos animais, quer ao seu desejo de os imitar. A aparição dos sexos teria sido uma consequência desta queda original. Teria sido, contudo, também um remédio divino, como se Deus, ao ver o estado de privação e de desejo em que, a partir desse momento, se encontrou o ser decaído, lhe tivesse dado Eva por mulher para evitar consequências piores2. Leão, o Hebreu, tinha-nos ensinado já que o objetivo original do homem não era a procriação mas a contemplação divina, a qual lhe tinha assegurado a imortalidade sem dever procriar. Foi quando o homem, por efeito da culpa, se tornou mortal que Deus o dotou com o poder de reproduzir-se dando-lhe Eva por companheira, a fim de que, de um modo ou de outro, o gênero humano não perecesse3.
Voltando à teoria de Boehme, a história da maçã e da serpente (a verdadeira culpa segundo o texto ortodoxo) não se referiria senão a uma segunda queda, ou a uma segunda fase da queda. O nascimento de Eva é-nos relatado nos seguintes termos por J. J. Wirz, discípulo de Boehme: depois de ter visto os animais a acasalar-se Adão gerou Eva primeiro como uma imagem mágica (poderíamos dizer: como uma imagem de febre projetada pelo seu próprio desejo) à qual deu em seguida substância terrena; Deus interveio por fim para insuflar também nela um espírito divino e dar-lhe um ser verdadeiro e para que, seguidamente, os dois fizessem um só4.
Encontra-se nestas especulações uma dicotomia característica do princípio feminino, relacionada com a doutrina de Sofia, a Virgem divina. O ser indiviso das origens teria estado unido, interiormente, «num matrimônio sagrado e secreto», ao «corpo luminoso de Sofia, a virgem celeste»; unido a ela, podia comunicar com Deus e fazer todos os milagres5. Georg Gichtel fala de Sofia como da «luz da alma de fogo» no ser original ao considerá-la como «o Fiat com o qual Deus criou tudo»6, isto é, como o «poder» de Deus, fazendo parecer quase que um equivalente de Çakti: também ela é assimilada à «Árvore da Vida» e denominada «Água da Vida» (M. Hahn) — deparamos, assim, de novo, com a convergência dos diferentes símbolos tradicionais do feminino, que já tínhamos notado anteriormente7. Sofia é concebida, finalmente, também como a «Sapiência Celeste». Boehme e Gichtel dão-nos também uma versão complementar da queda, afirmando: o ser primordial quis, tal como Lúcifer, dominar a Virgem que então se afastou dele de tal modo que não lhe restou senão o princípio do fogo privado de luz, árido e sequioso. Por outros autores (como Gottfried Arnold) é o próprio desejo físico que faz com que o ser original perca esta «esposa oculta»8. Apesar de tudo e mesmo decaído o homem deseja, secretamente, ao amar as mulheres, essa Virgem; é dela que tem fome, mesmo quando pensa satisfazer-se com o prazer carnal terrestre. A «débil» mulher terrestre não é senão um sucedâneo, sendo ilusória a integração que parece prometer. Boehme considera o obstáculo bíblico do Éden contendo a Árvore da Vida, um símbolo da impossibilidade de atingir o objetivo através da união dos sexos terrestres; é como que tocar num fruto que um jardineiro arranca subitamente da mão do homem, justamente porque o homem confunde Sofia com Eva, e a Virgem com a matrix Veneris que o seduz com um falso desejo9. Wirz10 concebe o fogo da espada do anjo à guarda de quem está o Éden, como aquele que deve destruir até às raízes o princípio animal do desejo naqueles que aspiram verdadeiramente à reintegração da imagem divina. Daqui passamos à mariologia e vemos na Maria Cristã a mulher através da qual se verifica não somente o nascimento do Filho, mas também o renascimento da alma.
Verificamos, assim, que mesmo nesta corrente que procura basear-se no mito bíblico hebraico, avalizado pelo cristianismo, a doutrina do andrógino é indicada como constituindo a chave do mistério da atração entre os sexos. Franz von Baader faz uma afirmação decisiva ao dizer: «Somente esta teoria que apresenta o pecado como uma desintegração do homem, a redenção e a renascença como a sua integração, se elevará vitoriosa sobre todas as suas adversárias11.» Em princípio, a doutrina de Sofia acabou, contudo, por conduzir ao dualismo dum ascetismo puritano: aquele que quiser chegar de novo a Sofia terá de renunciar a Eva, a mulher terrestre. Uma exclui a outra. Sofia identifica-se, por vezes, confusamente, a Maria, por vezes ao próprio Cristo (que segundo Scoto e outros autores teria restabelecido em si a unidade dos dois sexos); não somente o homem mas também a mulher a deseja, como se fosse ela, Sofia, a personificar a Unidade. O conjunto converge, pois, para o plano do simples misticismo religioso, e não saberíamos dizer se estas especulações deram pelo menos origem ao regime das evocações. O mesmo terá provavelmente sucedido com Gichtel (que é talvez o representante desta corrente mais próximo do esoterismo — encontramos nele, entre outras, uma doutrina dos centros secretos do corpo, idêntica às teorias iogas e tântricas)12. Escrevia este autor: «Temos um corpo sideral contido naquele que é composto pelos elementos, o qual é também espiritual e tem fome de Sofia, e que com esta sua fome permanente a seduz13.» De um modo geral, nesta corrente não se encontra, contudo, nada que se relacione com uma utilização iniciática, concreta do sexo. Chega-se, quando muito, a uma justificação idealizante do matrimônio, em lugar da sua negação ascética.
Esta justificação encontra-se sobretudo em Franz von Baader, um dos representantes mais tardios desta corrente, que escreve: «A finalidade do matrimônio como sacramento é a restauração recíproca da imagem celeste ou angélica tal como deveria existir no homem, e tal como seria justamente aquele que, interiormente (espiritualmente) deixasse de ser um macho, assim como a mulher deveria deixar de ser um animal feminino, pois somente deste modo teriam os dois completado em si a ideia de humanidade14.» «Só assim» — acrescenta Baader (Ibid., v. III, pág. 306) — «podemos compreender o elemento sacramental desta união (o matrimônio) pois só uma tal finalidade transporta para lá do tempo, até ao ser eternamente verdadeiro, enquanto que o que é simplesmente terrestre e temporal, não saberia, como tal, revestir-se do carácter dum sacramento, nem tem dele necessidade.» Assim, «o significado superior do amor sexual, que não deve ser identificado ao instinto de reprodução, é o de ajudar tanto o homem, como a mulher, a integrar-se interiormente (na alma e no espírito) na imagem humana completa, isto é, na imagem divina original» (Ibid., pág. 309). Esta imagem andrógina, tornada incorporal após a queda, deve encarnar-se, fixar-se e estabilizar-se nos amantes de modo que «os dois se não reproduzam unicamente num terceiro ser, a criança, mantendo-se contudo iguais a si próprios, tais como eram (não regenerados) mas que ambos renasçam interiormente como filho de Deus» (Ibid., pág. 308).
À parte este esquema abstrato, Baader não concebe, nem mesmo em teoria, uma verdadeira via iniciática do sexo, pois o dualismo cristão e um misticismo assexual apoderaram-se dele. Assim, vemo-lo, por exemplo, enunciar a curiosa e até ridícula teoria segundo a qual o simples abraço dos amantes, comportando exclusivamente a região do peito, se deveria opor à verdadeira união sexual, «a qual considerada separadamente, de modo abstrato, tão-pouco seria um ato de união e de amor (esponsais) que exprimiria, ao contrário, um maior reforçamento recíproco do egoísmo (do não-amor) que não termina numa união, mas sim na indiferença, pela separação dos dois polos desespiritualizados e, exatamente, por uma queda abissal de um no outro ( Wechselseitiges Ineinander-zu-Grunde-Gehen) e igualmente por um torpor irmão da morte : ato animal que, somente mediante o abraço, isto é, através do amor, é exorcizado» (Ibid., pág. 236, V. VII). Baader relaciona esta oposição com a antítese que existiria entre a doutrina cristã e mística do andrógino e a teoria «pagã» a qual, na sua opinião, se referia talvez ao hermafrodita: «Nas relações sexuais consideradas separadamente, isto é, sem o exorcismo do amor — do amor religioso, princípio único de toda a associação livre que enaltece o vínculo imposto pela paixão, até a uma união livre — não se manifesta de modo algum aquilo que julgaram os pensadores e os filósofos da natureza do paganismo, ou seja, um impulso para regressar ao andrógino bem como à integração da natureza humana no homem e mulher, mas, ao contrário, fisicamente e psiquicamente, no mesmo impulso orgíaco, sem amor, egoísta, do homem e da mulher de avivar em si esse duplo ardor hermafrodita, e de arrancar um ao outro o necessário para este enlace, de tal modo que na cópula sem amor o maior egoísmo do homem ou da mulher consiste em procurar a própria satisfação, servindo a mulher de instrumento ao homem e vice-versa: deste modo, a satisfação do instinto sexual obtém-se desprezando a personalidade e odiando-a até (Ibid., V. VIII, págs. 301-302).»
Aquele que estudou a doutrina do andrógino e a metafísica do sexo nas suas fontes autênticas, reconhece facilmente as confusões e unilateralidades próprias aos pontos de vista de Baader, que, tal como os outros autores que citamos, embora tivesse pressentido o móbil mais profundo da atração sexual, acabou, contudo, num vago misticismo, ressentindo-se sempre da aversão congênita do cristianismo pela experiência do sexo. Tal como sucede com vários teóricos do amor, Baader parece não compreender bem os valores efetivos desta experiência. As formas através das quais se reduz ao egoísmo sexual recíproco e ávido dos amantes, são as mais grosseiras até no simples amor profano. Vimos já que na experiência orgíaca, assim como em qualquer experiência intensa de união sexual, o fator destruidor e autodestruidor — que comporta uma ruptura da divisória individual e é, portanto, existencialmente, o oposto do egoísmo, da Selbstsucht — é, ao contrário, fundamental, e o leitor conhece já o sentido profundo do «ódio» a que Baader se refere. O que poderemos aceitar neste autor (como em Boehme) é o mito segundo o qual quando o ser primordial se separou do Pai, a «qualidade ígnea» teria revestido um falso ser como o Eu da masculinidade, e que esta forma é extrínseca e degenerativa, devendo ser ultrapassada, morta, desaparecida. Na prática, nada se nos diz, porém, acerca da forma de amor capaz de restaurar a Unidade como que através dum Mistério15. O quadro geral não parece diferir muito, nestes autores da ortodoxia que incita os crentes a reprimir o mais que lhes for possível a sexualidade, entendida como animalidade, devendo os esposos nos «matrimônios castos» amar-se sobretudo em Deus e esquecer assim as características sexuais. N. Berdiaeff, o representante mais recente desta corrente cristianizante, consegue mesmo, e segundo a mentalidade russa, deslocar o problema para o plano escatológico, relegando o homem «para a sexualidade transfigurada» e «para a revelação da androgeneidade celeste» numa futura época do mundo16.
Para concluir poderemos dizer que no seu conjunto esta especulação nada acrescenta à formação platônica deste tema: muito pelo contrário, as referências ao cristianismo e ao mito bíblico confuso impediram, logo no início, a possibilidade de deduzir do tema os princípios duma metafísica efetiva do sexo, isto é, duma doutrina apta a fundar, não somente um regime de hierogamias, mas também as práticas a que nos iremos referir no próximo capítulo, que se baseiam em fenômenos de transcendência que o amor sexual concreto, e não o amor místico, pode provocar. A verdade é que a doutrina do andrógino representa no cristianismo como que um grão estranho lançado num terreno que lhe não era propício e onde não podia frutificar. Os pontos de vista que acabamos de resumir podem, quando muito, servir àquele que não procura Sofia através de Eva, mas que tende a evocá-la e a unir-se a ela no plano místico com o auxílio de formas a que o conceito do arquétipo feminino, ou «mulher de Deus», deu origem, num certo cristianismo que se ressente de influências gnósticas. A propósito: seria interessante retraçar a origem da crença dos Mórmons segundo a qual um homem poderia, depois da sua morte, atingir o supremo grau de beatitude, o sétimo, e tornar-se um ser divino se não tivesse desposado uma mulher.
E. BENZ, recolheu no seu livro Der Mythus des Urmenschen (Munique, 1955), os principais testemunhos dos autores e místicos cristãos que se ocuparam da questão do andrógino. As citações que se seguem são tiradas dos textos reproduzidos nesta obra. ↩
Cfr. BENZ, op. cit., págs. 50-65. ↩
Dialoghi d’Amore, cit., págs. 432 e ss. ↩
J. J. Wirz, Zeugnisse und Eroffnungen des Geistes, Barmen, 1863, v. I, págs. 215-216 (Benz, 240-241). ↩
Cfr. BENZ, págs. 73 e ss. ↩
J. G. GICHTEL, Theosophia practica, Leyden, 1722, III, 2-4; VI, 29-31. ↩
Cfr. BENZ, págs. 200-202, Hahn escreve (pág. 202): «Se Adão tivesse possuído espiritualmente, magicamente a sua esposa, a Árvore da Vida, nele e por ele teriam nascido os frutos da vida.» ↩
Cfr. BENZ, págs. 126, 127, 129. ↩
BOEHME, Von den drei Prinzipen des gottlichen Wesens, XIII, 40. ↩
Cfr. BENZ, pág. 242. ↩
F. von BAADER, Gesamm. Werke, v. III, pág. 306. ↩
Sobre esta doutrina de GICHTEL, cfr. Introd. alia Magia, cit., v. II, págs 16 e ss. ↩
Theosophia practica, v. 31. ↩
Gesamm. Werke, v. II, pág. 315. ↩
Como única sugestão utilizável também na prática, poder-se-ia talvez indicar a identificação boêmia do masculino ao princípio do «fogo», do feminino ao princípio da «luz», a ideia de que «a cor do fogo deseja ardentemente no seu corpo a da luz», para apresentar como sentido de um amor ou de um ato sexual mágico «andrógino», uma «ignição» da luz e uma iluminação (libertação) do fogo. Com efeito: «a cor de Vénus e de Marte: a união do fogo e da luz (referindo-se uma ao homem, a outra à mulher) é considerada como «a via mais breve e rápida» e como a essência do processo de transformação da natureza humana, cfr. também C. A. MUSES, Illumination on J. Boehme, Nova Iorque, 1951, págs. 149-150. ↩
N. BERDIAEFF, Der Sinn des Schaffens, Tubingen, 1927, págs. 211-213, (Benz, págs. 219-292). ↩