Evola Cartuxa

Evola — Meditações na Cartuxa

Introdução: Continuando nosso labor de tradução de textos de Julius Evola para o português, apresentamos hoje um artigo escrito pelo tradicionalista italiano no Monastério Cartuxo de Haim na Alemanha. Evola esteve por alguns dias neste Monastério no ano de 1943. A leitura deste belo artigo mostrará que Evola não é de forma alguma um autor pagão e anticristão como alguns querem ver, mas um pensador que exalta os aspectos positivos da tradição contemplativa cristã.

06/10/2006

– Introdução, notas e tradução de Cesar Ranquetat Jr.
– EMAIL: franquetat@yahoo.com.br

Meditações na Cartuxa
Uma pálida paisagem invernal de campos espargidos de neve e charcos de água. Esqueletos negros de árvores desnudas. Um alto céu de zinco. Um grande silêncio. Nesta solidão, levada desde uma altura, surge à clara linearidade de uma fachada de igreja, a que se enlaça um alto cerco, mais além do qual se vê uma série regular de edifícios pequenos. Na parte dianteira, uma explanada com uma grande cruz negra. A entrada está fechada — se diria que desde tempos remotos — com uma pesada parada negra de madeira esculpida. Um símbolo: sete estrelas ao redor de uma esfera com uma cruz em cima, acompanhada da frase: stat dum volvitur orbi. Tal é a cartuxa de Hain, perto de Düseldorf.

A Ordem dos cartuxos se encontra entre as poucas sobreviventes da tradição contemplativa ocidental. Surgida em 1084, segue a mesma até os dias de hoje — ou seja, durante quase nove séculos — manteve sem modificações sua regra e sua constituição. Por quase nove séculos alguns homens separados do mundo praticaram a mesma ascese e cumpriram os mesmos ritos, nas mesmas horas repetiram idênticas orações; rimaram sua jornada de uma mesma maneira, que não deixa quase margem algum ao arbítrio individual, através do uniforme desenvolvimento das estações, dos anos, dos séculos. A imutabilidade, representada pela cruz, por cima do movimento do mundo, é o sentido do símbolo e da divisa latina, aqui citada. Mas a cruz sobre uma esfera naquele particular modo foi também o antigo signo do poder universal….

Wir haben überhaupt keine Ruhe — nos disse sorrindo um dos patres cartuchos, ou seja: não temos nem um momento de descanso, de trégua. É o oposto do que se imagina habitualmente sobre a vida contemplativa. A regra cartuxa não deixa um só instante inativo o sujeito: a totalidade da jornada se encontra rigorosamente subdividida, de modo tal que a cada hora corresponde uma tarefa precisa, um certo ato ritual, uma determinada realização litúrgica, com um único breve intervalo de trabalho manual para interromper uma tensão interior que de outra maneira seria insustentável.

O isolamento e silêncio são conhecidas regras dos Cartuxos. Toda Cartuxa está construída de acordo com um mesmo tipo arquitetônico. Um jardim claustral no centro também serve de cemitério — um cemitério no qual o “homem” não figura — há ali tão só cruzes negras, sem nome. Em seu redor, e separadas uma das outras, se encontram dispostas às habitações, em que cada cartuxo concentra seu trabalho, sua orações, sua ascese: ali ele come, vela, descansa, encontrando-se com os outros tão só no templo, para as ações litúrgicas coletivas, ou em raras solenidades, em que se celebra uma comida em comum: na clara severidade de um refeitório, no meio da parede de fundo, em lugar elevado, toma o lugar o Prior, concebido, na Ordem, quase como uma manifestação vivente de Cristo e investido de uma suprema autoridade.

O silêncio do cartuxo não é interrompido se não para um uso sagrado da palavra, para o oficio litúrgico: seja ele diurno ou noturno. No meio da noite invernal, baixo o sinal do sino, luzes vacilantes surgem quase simultaneamente, desde a obscuridade entre as lentas porções de neve, para iluminar as estranhas sombras brancas encapuchadas que se encaminham com suas lanternas até a capela. Ali tomam silenciosamente seu lugar; e as luzes são apagadas. Tudo permanece em uma penumbra diáfana. Alguns minutos de recolhimento, logo, depois de uma breve e um seco golpe, se inicia a liturgia. É um rude canto gregoriano sem acompanhamento, sem variedade de tons: é um ritmo, que recorda as melodias árabes, mas que em sua monotonia encerra uma muito mais alta intensidade espiritual que acusa uma espécie de insensível anelo ou ímpeto, que seria sumamente difícil de descrever: é como conduzir-se até um limite, que se é incapaz de transcender, ainda estando totalmente desapegados do vínculo terreno. Entre os temas principais do canto, proposto por uma ou outra voz, se intercalam pausas de recolhimento, que dão uma impressão mais forte: são momentos de um silêncio vivente,de um silêncio intenso, nos quais se diria que está presente “algo” no templo, uma força já diferente de todas aqueles que se encontram ali em recolhimento. O rito noturno alcança às vezes três horas de duração. Ante um novo sinal, as sombras brancas se apartam da penumbra, se movem, as lanternas são acesas novamente, os patres retornam as suas residências para voltar a encontrar-se em algumas horas mais tarde para o oficio da alvorada. Os cartuxos não se ajoelham nunca. Inclinam-se profundamente, ou nos momentos mais importantes, se recostam no solo como se tivessem sido abatidos.

Foi nos dito em Hain de não fazermos ilusões a respeito do futuro da Ordem. E em verdade, especialmente em nossos dias, para muitos não existe nada mais anacrônico que a pura vida contemplativa. Inclusive em vários ambientes católicos se acredita que o religioso pode ainda ter uma função tão só deixando de lado a ascese passando a uma ação militante ou proselitista, em direto contato com as forças do mundo e da história.

É um fato irrebatível que não desde hoje o ocidente identifica a ação em suas modalidades mais exteriores, materiais e contingentes. Pelo qual se concebe como inércia ou fuga a tudo aquilo que, ainda não sendo para nada não-ação (a vida ascética, ademais das renúncias, implica uma disciplina e um concentração interior pelo menos tão grande como as próprias de qualquer “homem de ação”) não se deixa remeter a semelhantes modalidades. Ademais existem as confusões próprias de quem, encerrado no horizonte mais grosseiramente sensível, pensa que só as forças materiais e outros modos diretos de combater e resistir sejam os decisivos e determinantes na história.

Donoso Córtes , que foi também um homem de ação pública, afirmou que para que uma sociedade seja firme“ é necessário que exista um certo equilíbrio, conhecido tão só por Deus, entre a vida contemplativa e ativa.” A necessidade de que o mundo mutável e incerto da ação encontre seu complemento e quase diríamos seu eixo no imutável da verdadeira contemplação — ou seja de um interioridade virilmente desapega e projetada até a transcendência — foi reconhecida por qualquer civilização normal, até aquela em que Dante e Frederico II foram seus expoentes.E, em relação com isso, foi também concebida a realidade de uma ação de outro gênero, de uma ação silenciosa, compreendida em função de estabelecer “contatos”, de mover forças que, por ser invisíveis, não são menos eficazes que as puramente humanas, pois só através da via da ascese e do rito podem ser alcançadas. É sobre esta base que toda doutrina tradicional define que os ascetas devem estar ao lado dos guerreiros, que a contemplação ilumina, justifica e converte em absoluta a ação, que homens adequadamente dotados cumprissem de maneira ininterrupta, com sua aparente retirada do mundo, com a função de vincular a realidade humana com uma realidade mais que humana. Pontifex, antigamente, significa para os romanos “fazedor de pontes”. Uma antiga fórmula nórdica era: “O que é chefe que seja ponte…”.

Um mundo que não queira ser de agitados, se não de seres que conheçam verdadeiramente a ação e saibam dominá-la, deve ter em conto tudo isto, evitando perigosas unilateralidades. Por certo hoje mais que nunca se trata de apartar do modo que seja todas as forças evocadas a fim de atuar e de combater este mundo. Entretanto, se pode também pensar que se nos últimos tempos as coisas não estão ainda piores, isso não se deve tão só aos chefes visíveis dos povos, mas pelos menos em igual medida a ação invisível e silenciosa do poucos seres espalhados e ignotos, neste como em outros continentes, que manterão, todavia, de alguma maneira, as relações entre o mundo visível e o mundo superior. Mas ainda é possível que para o olho “da outra margem” seja justamente estes que aparecem como os únicos pontos luminosos e firmes em um mundo de névoa e agitação, como pequenas fogueiras acendidas na noite por parte daqueles que “velam” e que ainda se mantém de pé.

Aqui por suposto que não pretendemos referirmos a ascetas de uma determinada fé ou tradição e não tratamos do problema relativo a medida, no qual as forma sobreviventes de ascese realizam verdadeiramente a mencionada função. Porém, a Europa apresenta hoje traços de similitude com aquele período de convulsão no qual, como reação, surgiu às primeiras Ordens monásticas ocidentais. E muitos espíritos, incapazes de encontrar os mais altos e originários pontos de referência, se dirigem hoje até o catolicismo. Não é nossa função entrar em tais problemas; entretanto um ponto nos parece claro: não é sendo indulgente até atitudes militantes que às vezes confluem inclusive no plano das motivações políticas e sociais, não é insistindo em veleidades proselitistas e apologéticas, não é buscando compromissos com o pensamento “moderno” e inclusive com as ciências profanas de hoje em dia, e sim se desapegando decididamente, insistindo tão só no ponto de vista da ascese, da pura contemplação e da transcendência, que a Igreja poderá quem sabe, dentro de determinados limites, voltar a converter-se verdadeiramente em uma força e assegurar-se assim uma inviolável autoridade. Se, justamente em tempos como os modernos em que o mundo da ação atingiu um paroxismo sem comparação alguma na história, quase por contraposição, deixando tudo mais, subordinando qualquer ambição semi-temporal, se deveria dar um relevo mais decidido ao pólo da pura transcendência e da ascese,e que uma força encontre na outra seu equilíbrio, e que nas horas mais angustiantes e nas provas mais duras a cada um seja dado a possibilidade de transfigurar todo sacrifício e todo luta e de achar inclusive na morte a via até uma vida superior.

Hain, Fevereiro de 1943.
La Stampa, Fevereiro de 1943.
Julius Evola.

Notas do tradutor:

1- A Igreja Católica, principalmente após o Concílio Vaticano II, se afasta cada vez mais de seus aspectos sacramentais e ascéticos para se imiscuir em questões meramente mundanas.

2- Escritor e político católico de linha tradicionalista de Espanha. Crítico feroz da modernidade.



Julius Evola