DOUTRINA DO DESPERTAR — A CONSCIÊNCIA SAMSARICA
EXPERIÊNCIA INTERIOR E EXTERIOR
O termo budista, para designar uma realidade dada, uma vida individual ou um fenômeno é khandha ou santana. Khandha quer dizer literalmente « montículo », « aglomeração » — mas se entende por “feixe”, “agregado” — e Santana que dizer “corrente”. No fluxo do devir formam-se turbilhões ou correntes de elementos psico-físicos e de estados encadeados — ditos dhammas — dotados de uma certa persistência, enquanto subsistem as condições que os fizeram convergir e agregar-se. Após o que, dissolvem-se e, no devir, no samsara, em algum outro ponto, formam-se conglomerados análogos, tão contingentes quanto os precedentes. É neste sentido que se declara: “Todos os elementos da existência são transitórios” — “Todas as coisas são privadas de uma individualidade ou de uma substância, que seja sua — sabbe dhamma anatta’ti” (Dhammapada, 277, 279). A lei da consciência samsarica é expressa por esta fórmula: Sunnam idam attena vâ attaniyena vâti — vazio de “eu” ou de uma coisa que se assemelhe ao “eu”, de substância. Outra expressão: Tudo é « composto » — sankhata — « composto », equivalendo aqui a “condicionado” ([?Dhammasangani], 185). No samsara, só existem estados condicionados de existência e de consciência.
Este ponto de vista é válido, tanto para a experiencia exterior quanto para a experiencia interior. Deve-se enfatizar que os dhammas, os elementos primários de existência, no budismo — e sempre nas formas tardias — valem como simples conteúdos de consciência, e não como princípios explicativos abstratos, supostos pelo pensamento, tais quais foram, por exemplo, os átomos das antigas escolas físicas. Assim a doutrina da anatta, da não-substancialidade, a respeito da experiencia externa, fará sempre seu, mais o ponto de vista de um puro empirismo ou fenomenismo. Tal como o mundo externo aparece diretamente, tal ele é. Não se deve dizer: “Este objeto tem esta forma, esta cor, este sabor, etc.”, mas: “Este objeto é esta forma, esta cor, este sabor, etc.” — não se dá, por conta dos dados sensíveis, nada a que eles sejam relacionados (Stcherbatsky, The central conception of buddhism, pp 26-27, Londres, 1923). Como se dirá em termos modernos, existe somente e só é real o continuum da experiência vivida.
Mesmo ponto de vista a respeito da experiencia interior e da unidade da pessoa. Contesta-se do mesmo modo a possibilidade de se falar, com fundamento, de um princípio substancial, imortal e imutável, da pessoa, tal qual o atma upanixadico. A pessoa — sakkaya — é, ela também, khandha e santana, um agregado e uma corrente de elementos e de estados impermanentes, “compostos”, condicionados. Ela também é sankhata. Sua unidade e sua realidade são puramente nominais, ainda mais “funcionais”. Por isto se diz: assim como a gente se utiliza a palavra carro, quando são reunidas diversas partes de um carro, assim também quando estão presentes diversos elementos, constituindo a individualidade humana, fala-se de uma pessoa. “Assim como a conexão destes elementos constitui o conceito de um carro, assim também a agregação ou a concatenação de seus estados dá seu nome a um ser vivo” ([?Milinda_Panha], 58). O carro é unidade funcional de elementos, não uma substância; do mesmo modo, a pessoa e a “alma” — da mesma maneira, as palavras ‘ser vivo’ e ‘eu’ são igualmente uma designação para o quíntuplo tronco do apego” ([?Visuddhimagga], VIII). Quando cessam, neste tronco, as condições que determinaram a combinação dos elementos e dos estados, a pessoa, enquanto tal, — quer dizer enquanto pessoa determinada — se dissolve. Mas também, na sua duração, ela não é um “ser”, mas de fato um fluir, uma “corrente”, porque a santana é concebida como algo que não começa com o nascimento e que não se interrompe com a morte ((A noção de eu-corrente aparece já em [?Digha_Nikaya] (III, 105) e [?Samyutta_Nikaya] (III, 143): “Tal é esta corrente, semelhante a uma fantasmagoria privada de substância”: além dela, o asceta, indo como aquele “cuja cabeça estaria em chamas”, busca “a morada indestrutível”.]
A base positiva deste ponto de vista — certamente pouco consoladora para todo “espiritualista” tomado por suas divagações — é que a única consciência, que a maior parte dos homens, pertencentes ao ciclo atual, pode falar positivamente — yatha-bhutam — é aquela que “tornou-se” e “formou-se”, digamos determinada e condicionada pelos conteúdos, conteúdos que, todavia, não são permanentes. Consciência e conhecimento são interdependentes: “estas duas coisas conexas, não separadas, entre as quais é impossível estabelecer uma distinção e indicar uma diferença. Com efeito, aquilo que alguém conhece, ele está consciente disto, e isto que está consciente, ele o conhece” ([?Majjhima_Nikaya] XLIII — I, 430). Assim como não faz sentido discorrer sobre um fogo em geral, pois existe o fogo de sépia, ou de fumeiro, ou de brasas, ou de galhos, e assim por diante, da mesma maneira não se deve falar de consciência em geral, mas de uma consciência ou visual, ou auditiva, ou olfativa, ou gustativa, ou mental — segundo os casos em que esta se apresente ([?Majjhima_Nikaya] XXXVIII — I, 380-381). “Por meio do olho, do objeto e da consciência visual encontra sua origem o visto: assim para o ouvido, para o cheirado, o saboreado e o tocado: da mesma maneira, o espírito e as coisas, encontram sua origem no pensar. Estes estados sensoriais têm sua origem de causas, sem que estas impliquem em um princípio substancial” ([wiki:Milindapanha], 54-57). “É em correlação com o corpo que surge a ideia de “eu, eu sou”, e não de outro modo. E assim é para o sentir, para o perceber, para as tendencias, para a consciência — em correlação com tais causas, vêm a ideia “eu, eu sou”, e não de outro modo” — causas que, todavia, são impermanentes ([?Samyutta_Nikaya], XXII, 83).
Vendo assim as coisas, é evidente que a ideia de um atma, de um Eu substancial incondicionado, está excluída. Precisamente porque a consciência está “vazia de Eu”, “porque se trata sempre de uma consciência que aparece em companhia de um conteúdo dado: sensorial, psíquico ou mental ([?Samyutta_Nikaya], XXXV, 193). De uma maneira geral, o Eu real, experimentado por cada um, não é aquele teorizado pelos filósofos, pois é condicionado pelo “nome-e-forma”. Esta expressão, retomada da tradição védica pelo budismo, designa o indivíduo psico-físico: “isto que, neste conjunto, é denso e material” — se diz ([?Milinda_Panha], 49) — “é forma; o que é sutil e mental, é nome”, existindo, entre um e outro, uma relação de interdependência. Associada a “nome-e-forma”, a alma segue as modificações fatais, e eis porque, como veremos, angústia e agitação — segundo o budismo — pertencem ao substrato mais profundo de toda vida humana e, geralmente, samsarica [ ((?Visuddhimagga], XVII — a mesma ideia se encontra expressa na imagem seguinte: se o óleo e o pavio de uma lamparina são impermanentes, não se pode pensar que a chama seja, ao contrário, permanente e eterna — [?Majjhima_Nikaya], CXLVI, II, 384]. Assim, instanciam consciência (individualizada) e “nome-e-forma” se intercondicionam. Uma não se mantém sem a outra, assim como, segundo a imagem de um texto, duas pranchas não se mantém em pé a não ser que se apoiem uma na outra. O que equivale dizer que a pessoa deve ser considerada como um todo “funcional”, que não tem o devir como acidente, mas sim como sua substância mesma. “Um estado acaba e outro começa: e a sucessão é tal que se poderia quase dizer que nada precede e que nada se segue” ([?Milinda_Panha], 40-41).
Tudo isso pode valer como introdução à teoria das “quatro verdades ariyas” — cattani ariyasaccani — e da gênese condicionada — paticca samuppada. A teoria da não substancialidade, tal qual até aqui resumida, chega a uma visão fenomênica do mundo interior e exterior. Além deste, é possível assumir o ponto de vista das forças atuantes, para descobrir sempre em termos de experiencia vivida — qual o sentido profundo e a lei interior deste fluir, desta sucessão de estados. É então que se apresentam as duas primeiras verdades ariyas, correspondendo aos termos dukkha e tanha.
Aqui, já é necessário, não somente separar a medula substantiva do ensinamento budista de seus elementos acessórios e de suas formulações populares, mas ainda mais enfrentar uma terminologia que é sempre difícil fornecer o equivalente preciso nas línguas ocidentais, dado que, no curso de um mesmo texto, as expressões chegam até a mudar frequentemente de significação. Do mesmo modo que os termos das línguas ocidentais modernas são rigidamente unívocos, porque são baseados essencialmente em abstrações verbais e conceituais, assim também os termos das línguas orientais são, ao contrário, plásticos em sua maneira de se adaptar à riqueza de um conteúdo vivido.