Ao escolher este título para minha intervenção nas quartas Jornadas da Universidade de São João de Jerusalém quis antes de tudo render uma homenagem direta ao belo trabalho do meu colega e amigo Jean Servier, em As portas do ano, consagrado às grandes “passagens” sazonais e solares numa civilização mediterrânea; ao mesmo tempo, quis debruçar-ME sobre o aspecto “temporal” da religião católica romana — isto é, a sacralização do tempo terrestre, integrando nele aliás a ordem temporal do “santoral”. Serei aqui o porta-voz indigno — e inesperado! — da religião católica apostólica romana, no que ela tem de mais coletivo e de mais popular: a lenta elaboração (e não “evolução”) da sua liturgia ao longo de vinte séculos.
Focalizando essa religião ao mesmo tempo no seu território original, a bacia do Mediterrâneo, e no seu centro histórico que é Roma, anuncio desde logo, e sem escrúpulos, uma intenção geral, que em nossos dias é muitas vezes apreciada: o sincretismo. Meu objetivo é não cortar o cristianismo das suas raízes judias e pagãs. Muitos apologistas anêmicos já quiseram convencer-nos de que o cristianismo “autêntico” e “puro” é a curiosa flor sem talo de uma modernidade “desmitologizada”, epifenômeno da ética social das nossas sociedades industriais.
Em nome da historicidade, dois mil anos de história são sacrificados no altar do aggiornamento que está na moda — dois mil anos de uma lenta sedimentação de crenças, liturgias e dogmas. A antiga árvore de Jessé é anexada alegremente à modernidade humanista. Não só se faz passar a fé antes das obras, como o fez a Reforma, mas ainda liquida-se “a religião”, o “sagrado”, o ritualístico, quem sabe até “as crenças”, em nome de uma curiosa “fé” que se limita, como exegese, ao reducionismo da psicanálise ou da economia política…
Estamos assim bem no centro do nosso problema: uma tal “fé” deixada aos caprichos dos impulsos, à conjuntura dos mercados, às flutuações da moda, não será o tipo da vagabundagem divergente do caminho seguro que garante a “longa duração” do gênio do cristianismo, no curso de vinte séculos de um itinerário espiritual e também temporal? E porque quis aqui tomar como exemplo da peregrinação temporal o modesto calendário católico e romano do que ainda é a cristandade, não posso deixar de sentir uma certa amargura ao folhear o “calendário litúrgico” tal como sancionado pela aplicação defeituosa das diretrizes do II Concilio do Vaticano. Amargura que sinto ao constatar, antes de mais nada, uma certa vagabundagem hagiográfica no santoral. Uma boa meia-centena de celebrações de santos mudaram de lugar no novo calendário — entre elas a do meu patrono —, sem que pareça haver qualquer justificativa para festejar o dies natalis de Francisco de Sales a 24 e não 28 de janeiro, e o de Catarina de Siena a 29 e não 30 de abril. O mesmo mistério paira sobre a permutação das festas de São Beda, o Venerável, e de Santo Agostinho, em 25 e 27 de maio…
Não há dúvida de que essas são o que Maurice Clavel chamaria de folâtreries veniais. Mas há outros casos mais aflitivos: santos venerados no Ocidente durante séculos desapareceram pura e simplesmente do calendário. Uma liquidação que a comissão histórico-litúrgica de 1902 não havia ousado tentar, a despeito do impulso positivista do I Concilio do Vaticano. Foi o que aconteceu, dentre outros, com quase todos os quatorze santos auxiliadores, dos quais só sobrou São Jorge — no entanto tão “legendário” — e São Blaise, não se sabe bem por quê. Os demais foram expulsos: o grande São Cristóvão, cuja estátua gigantesca de transportador e guardião dos umbrais figura em tantas fachadas de nossas igrejas, foi eclipsado definitivamente em 25 de julho pelo seu gêmeo em matéria de proteção dos peregrinos, Tiago o Maior, irmão de João. E, no entanto, que belo simbolismo havia na aproximação naquele dia desses dois santos — os “transportadores” da fé, patronos de todas as viagens! Que pensaria Joana d’Arc da sua liquidação da Senhora Santa Margarida e da Senhora Santa Catarina, em 20 de julho e 25 de novembro? Seria assim o bispo Cauchon quem se situava no sentido da história? ? verdade que desapareceu também, em 9 de outubro, o ilustre primeiro bispo de Paris, São Denis, que a piedade e Jacques de Voragine confundiram outrora com essa luz da mística e da teologia medieval, Denis o areopagita.
E sobretudo — contradizendo totalmente Divino afflatu, a bula de Pio X, de primeiro de novembro de 1911, e desprezando tradição angelológica tão poderosa entre o “povo do Livro”, como o mostrava de forma clara um recente e sábio colóquio havido não na Cúria romana, mas na universidade de Tours — os arcanjos Gabriel, Rafael e todos os santos anjos estão agora afastados e amontoados na festa da consagração do arcanjo Miguel, perto do equinócio do outono. Ora, o nosso antigo calendário tivera o cuidado de situar os três arcanjos maiores da cristandade, Gabriel, Miguel e Rafael, nas cúspides do equinócio da primavera (Gabriel, em março, secundado pelo legendário São Jorge em abril) e do outono (Miguel, secundado por Rafael, na cúspide do escorpião). Porque esses três arcanjos, como aliás todos os outros, tipificam potências distintas, orientadores cada uma delas de uma função, de um mundo. Gabriel é o angelus rector da lua e, especialmente na tradição islâmica em que tem o papel de intermediário, de “arcanjo purpurado”, o mais próximo da humanidade “sublunar”, enquanto Miguel, com sua espada flamejante, é o rector do sol; Rafael, o protótipo do médico, protetor da Viagem de Tobias, é o rector de Mercúrio, o planeta do deus viajante e condutor das almas.
Desorganização e vagabundagem do santoral, supressão historicista dos santos excessivamente legendários, liquidação das festas equinociais dos arcanjos… decididamente os costumes da Igreja de Paulo VI, sob o báculo de Monsenhor Annibal Bugnini, são mais impenetráveis do que os da desbancada Providência! Essa vagabundagem, dizíamos, provém de um certo aggiornamento que, para satisfazer o gosto positivista de anteontem, sacrificou o simbolismo natural e imemorial dos pontos cardiais do tempo e do espaço, dos trabalhos e dos dias, a não sei qual ídolo de uma historicidade digna dos ultrapassados Loisy e Renan.
A Igreja romana deveria proteger-se dos excessos da desmitologização, cujos resultados catastróficos se podia constatar nas Igrejas reformadas sob a orientação de Barth e de Bultmann; ou mesmo na “Reforma” judia dos Friedländer ou dos Abraham Geiger, no século XIX. Mas os sectários da história e da sociologia positivas são a tal ponto obnubilados pelos seus ídolos que se recusam a extrair por si mesmos as lições da ciência histórica e da sociologia. Por outro lado, que “orientação” se pode esperar dos ministros conciliares que, profanando toda a arquitetura sagrada do nosso Ocidente — voltando as costas deliberadamente ao Oriente — e ao simbolismo matutino de quase todos os hinos do nosso breviário: A solis ortus cardine, Jam Christe sol justitiae, Aurora jam spargit polum, Aurora lucis rutilat, Aurea luce et decore roseo, etc., diante do Ocidente, do átrio e ao povo, entregam-se (como diz um crítico com irreverência mas muita justiça) a “sua pequena cozinha sem mistério aparente”.
Essa teologia perversa, posando de “dogma” totalmente herético (porque não figura em nenhum texto, em nenhum léxico do Velho ou do Novo Testamento), a “descida de Deus para a história”, foi retomada pelos espíritos católicos mais notórios do nosso tempo, como R. P. Daniélou e Henri de Lubac. Este último, eco de tantos outros autores, afirma com todo sangue frio que “Deus age na história, Deus se revela pela história”; opondo-se à mística “solitária” (sic) de Filon, pensa que a fé se desenvolveria “socialmente, na história”. Não vamos retomar uma vez mais o fastidioso processo do aggiornamento historicista, positivista e sociologizante que, a partir de Schelling, Hegel e da escola de Tübingen (à qual se filia explicitamente Lubac), e talvez Dilthey, até Laberthonnière, Guitton e finalmente Teillard de Chardin, reduz o divino a uma epistemologia, para não dizer uma superstição, inteiramente humanista, a da história.
Tudo se passa como se o sincretismo (palavra que causa horror!) e o ecumenismo em companhia da antropologia e do núcleo das crenças mais profundas no coração do homem, que existem semper et ubique, fossem mais temíveis do que o compromisso com o episteme fugitivo do século, suas pompas políticas e obras sociais. Vamos enfrentar aqui essas secularizações desastradas — isto é, que provocam o “mal-estar” que sabemos —, como porta-voz da tradição do calendário da Igreja romana. O gênio do velho calendário cristão, desde São Leão e o Almanaque de Filocalus, do III século, até Pio X (1913) e mesmo até a abertura do segundo Concilio do Vaticano, passando por Gregório XIII, Pio V (no século XVI) e Benedito XIV (no século dezoito), provém do fato de que ele permite que o ano natural, dos meses e estações da terra do velho paganismo romano, se case com os ciclos temporais litúrgicos e os pontos de escansão (sinapses, muitas vezes) do santoral e dos martirológios.
Para a análise do calendário litúrgico, vamos guiar-nos assim, prudentemente, pelo modelo da Bula Quo primum tempore, de 14 de julho de 1570, que até as vésperas do Vaticano II regeu os trabalhos e os dias da cristandade ocidental. Longe de ser uma vagabundagem new look, que não conhece mais a sua origem, e sabe menos ainda para onde a atrai o “ponto ômega” de Nietzche, o calendário fixado e restaurado pelo Concilio de Trento vai aparecer-nos como se seguisse os caminhos imemoriais do ano partindo dos equinócios e dos solstícios, repartindo estações e meses, mas transformando este itinerário herdado da velha Roma — pelo poder dos grandes mitos da Bíblia e dos Evangelhos — em caminhos peregrinos nos quais, para retomar uma expressão desta vez feliz de Jean Guitton, “se justifica o tempo”.
Justifica-se o tempo, a duração concreta dos trabalhos e dos dias, das idades da vida, dos nascimentos, crescimentos, dos exitus… mas não se justifica a história, ainda que seja César seu historiador-filósofo e propagandista!
Desta forma o “tempo” cristão do Ocidente se manifesta a nós como um conjunto organizado de peregrinações imaginais (plural de “imaginal”, termo tão caro a Henry Corbin), que nada têm a invejar às circunambulações e às santas peregrinações dos Mandalas e Mandaras orientais… Faço aqui esta aproximação com os métodos de oração dos budismos da tradição mahayana, e à peregrinação do Islã porque minha exposição pretende complementar exatamente a que fiz à Sociedade Ligeriana de Filosofia, há dois anos. Esbocei então uma “diagramatologia”, com base nos diagramas do xeque Sayyed Haydar Amoli, do século XIV; hoje, gostaria de mostrar que o cristianismo do Ocidente nada tem a invejar à diagramatologia muçulmana.
Para fazer isso, parti paradoxalmente do estudo histórico da lenta sedimentação da liturgia e, de outro lado, da contabilização “semi-estatística” bem conhecida do sociólogo rompido com as análises culturais de Sorokin. Apresso-ME a dizer que esse paradoxo é só aparente: quanto mais denunciamos a heresia que consiste em idolatrar o produto da reflexão historicista e a hipostasiar a espécie Homo sapiens, mais valorizamos a ciência histórica e as ciências da sociedade e das culturas. Há uma contradição paradoxal naqueles que, pretendendo sublinhar fanaticamente o privilégio “kerigmático” do seu cristianismo, o liberam de qualquer inserção histórica e cultura do sagrado, para finalmente achatá-lo no acontecimento mais anedótico e incluir nas filosofias da história do século passado, dignas da Religião da Humanidade, o kerygma soberbo de um cristianismo atualizado, ao gosto caprichoso do noticiário da TV, dos principais jornais e revistas contemporâneos.
É pelo mesmo encadeamento de erros que se reivindica um valor falsamente transcendental para os modos da modernidade, e que se afirma que o cristianismo, sua liturgia, seu calendário, nasceram já completos da pregação kerigmática de Jesus e dos primeiros Apóstolos. Ora, não só o Cristo não veio “abolir”, e Auschwitz e os Gulag, contrariando o ídolo teilhardiano do “progresso” não representam um aperfeiçoamento, em comparação com as deportações babilônicas, mas também a ciência histórica nos mostra que o cristianismo “derivou” lentamente e “realizou” os dados imemoriais, solares e lunares, contidos nos calendários de judeus e gentios, assim como toda a ciência social nos prova que “o pensamento dos homens teve sempre a mesma qualidade” e que modernidade não é sinônimo de “pensar bem”!
Mais do que uma dupla idolatria da historicidade e do progresso da humanidade, desprezando as longas durações históricas e as morosidades do presente, os que refletem seriamente nas ciências históricas e culturais sobre os lentos desenvolvimentos da liturgia cristã a comparam ao desenvolvimento harmonioso de uma árvore — em companhia do Cardeal Newman —, ou a um grande rio, uno da embocadura à nascente, como R. P. Mollien; ou então, como Noéle Denis-Boulet, a uma galáxia onde gradualmente “planetas e satélites se destacam das estrelas”. É o crescimento dessa árvore, a sedimentação desse rio, a expansão desses astros que precisamos examinar com a lupa dos métodos científicos. Mas voltemos a dizer, ainda uma vez, que não devemos tomar a lupa pelo objeto que ela estuda, a lua pelo dedo que a aponta!
O primeiro resultado de uma contabilização estatística dos diferentes “estratos” temporais e santorais depositados pelos séculos sobre o ano calendário, que este capítulo não cessará de comentar, é a constatar que há uma inflação regular do santoral em três quartos do ano, fora da quaresma e do tempo pascal, e que as grandes festas do Temporal se distribuem de maneira regular e significativa em pontos precisos do ano solar, próximos dos dez últimos dias do mês (dias ante calendas) do calendário Juliano, isto é, das cúspides do calendário zodiacal.
Mas antes de entrar no comentário propriamente dito dos grandes “caminhos” significativos do ano litúrgico, é preciso fazer quatro observações sugeridas pela configuração diagramática das nossas contagens. As duas primeiras resultam dos cálculos judeus e “pagãos”, nos quais o ano cristão vem se lançar. A terceira tem a ver com o deslocamento muito instrutivo do solstício crístico com relação ao solstício trópico. Finalmente, a quarta sublinha o sistema não pontual do tempo com o desdobramento festivo das oitavas, vigílias e sinapses. Só a partir do desenvolvimento dessas quatro observações combinadas se pode induzir com segurança o sistema dos “caminhos” do ano cristão, graças às distinções contábeis significativas.
Partimos, como devido, dos primeiros cômputos pascais, conforme aparecem gravados no pedestal da estátua de Santo Hipólito do museu de Latrão (que data do primeiro ano do reinado de Severo, ou seja, 222) e do famoso almanaque que Furius Dionysus Philocalus ofereceu a Valentinius no Ano Novo de 254. Desde o século III se desenvolvem com base nesses cálculos os dois ramos da árvore do calendário cristão: o ramo das festas móveis indexadas pela lunação pascal e o ramo dos dies natalis — nascimentos terrestres ou celestes! — cujo modelo será o Natal. Desde logo pode-se dizer que um é a continuação e a “realização” do calendário do paganismo judeu; o outro está vinculado sobretudo ao calendário do paganismo romano, e especialmente ao calendário solar juliano.
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